PROGÊNIE & MAIS

PROGÊNIE

Se os deuses nos retomam com a esquerda

o bem que haviam dado com a direita,

com nosso mal transcorre de igual feita:

se uma castiga, a outra afasta a perda...

E assim se trama o destino com tal cerda,

tal como o gume de uma lâmina se ajeita,

um pouco de calor, dose perfeita:

e então o frio, com que a têmpera se herda.

Pois há equilíbrio entre a perseverança

e a indolência, que também se adensem,

nas traças de alternância mais honesta.

E ainda bem que é assim. Sempre esperança

possuímos de que os males nos compensem:

não noutra vida, mas justamente nesta...

VÉUS DE TULE VI

Então me chega a apsara, em sua vaidade:

finge não ver, mas olha de soslaio;

do encontro de seus lábios brota um raio,

direto ao coração da humanidade...

Das vastidões da Índia em santidade,

brota sensual um sacramento. Alçai-o

perante os deuses ancestrais. Louvai-o!

Do corpo humano é a religiosidade...

E ela se volta e tantreia seu namoro, *

orgulhosa ao causar tal atração

e satisfeita contempla seu reflexo.

Seu corpo redolente em pós de ouro,

o ventre só entrevisto, em sedução,

nesse arcano ritual que leva ao sexo.

* tantrear = agir tantricamente.

ESPERA INÚTIL IX

Meus sonhos são meus filhos; como tais,

eu os tiro da cama, dou comida,

os levo para a escola e, após a ida,

deixo que brinquem, como seus iguais...

Precisam de atenção, como os demais;

depois, o sono os leva de vencida;

quando preciso deles acolhida,

já adormeceram e não me servem mais...

Ainda os filhos, se criam para a vida,

porém os sonhos, perdido o seu vigor,

não só não sobrevivem ao sonhar,

mas nem sequer acenam despedida...

E, quando os vejo despidos de calor,

os amortalho, sem que haja despertar...

ESPERA INÚTIL X

Abrigo assim mil sonhos, de mansinho,

na timidez de criança controlada,

cada intenção de fuga bem podada,

aconchegada no mais falso carinho.

Cada sonho, um desejo pequeninho

de poder revoar pela alvorada,

de poder colorir-se, na acabada

faina do dia, que o sol transforma em vinho.

Não foi minha culpa: nunca os amansei,

tampouco fui do barco o timoneiro:

o Fado me serviu de capitão...

Desse modo, em mil beliches os deitei,

de um navio confinado ao estaleiro,

sem ter nunca transposto o seu portão!...

CAPELOS

A busca da justiça, assim nos diz

a história, estudada em seu valor,

causou mais injustiça em seu furor:

cada juiz buscando o quanto quis.

Ninguém tem o direito a ser feliz,

apenas a essa busca. Tal o amor:

ninguém tem o direito a seu calor,

apenas em sua busca se bendiz...

Mas as pessoas julgam ter direito

a bens aleatórios, bens casuais,

que no final não lhes trazem o proveito;

mas se a conquista reduz à vacuidade

sonhos de amor e todos os ideais,

igual ocorre com a felicidade.

CHAMEJAR

Quando a mulher se mostra feminina,

sempre é mais bela do que suas rivais.

Quando seu coração demonstra mais

carinho e afeto, é quando mais se afina

à sedução inata na menina,

que se faz adolescente e que jamais

se recusa a sorrir, nesses fanais

que são seus olhos, brilho que fascina.

Nem é que corresponda a tais padrões

que dizem ser beleza... É o desejo

que brota lá de dentro; e a simpatia

de quem já traz a vida nos pulmões,

para insuflar, na dádiva do beijo

ao que consiga despertar a sua magia.

ABOLEIMA (Pasmo)

Sempre me perturbava quando a via:

algo no seu andar, no olhar, na boca,

esse clarão que, às vezes, nos espouca,

como a primeira camélia que se abria.

Fugaz, como a camélia que caía,

qual na velha canção, que lembra pouca

gente hoje em dia; e, com voz rouca,

repete o verso antigo, que outro dia

era cantado nas ruas com frequência.

É sensação fugaz -- vem e reluz

e se desfaz, ao toque do controle...

Só num resquício o coração me bole,

quando ainda a vejo, na sua decadência,

do feminino passageiro a que me expus...

ADMINÍCULO (Subsídio)

E quando falam do eterno feminino...

Tão transitório que a imagem de um espelho

reflete um rosto, apenas... Rosto velho,

que é tão mais moço que o rosto do destino.

Tão só lhe tremeluz, frágil reflexo...

Seria de esperar que o novo fosse

mais jovem que o antigo, mas nos trouxe,

na novidade da velhice o nexo...

A mim, me importa pouco. Sempre falam

que o homem, muito menos que a mulher

desgasta o rosto e o corpo; porque suga

toda a beleza o espelho; e cada ruga

é provocada por visões que calam

muito mais fundo em quem menos as quer...

HAPLÓSTOMO [com uma só boca]

Não sei se trabalhar é meu direito

ou meu dever; se é honra, ou se é prazer.

Mas posso acreditar terá proveito

de quanto faço, aquele que me ler,

em centenas de livros traduzidos:

de fato, reescritos; real parte de mim

se reflete nessas linhas... É assim,

se de um idioma a outro são vertidos.

Sei bem que até desejo continuar,

de preferência a quaisquer outros prazeres,

como intérprete de alheias emoções...

Do mesmo modo que dispus-me a escutar

dos outros as tristezas; e os quereres

de até me imporem as próprias convicções.

ESPERA INÚTIL XI

Meus sonhos são meus pais e me governam,

mas lutam entre si... Túnel estreito

é a saída a que todos têm direito,

no parto sideral em que se alternam.

Mas nesse alumbramento em que se eternam,

meu coração dominam, num perfeito

mal-entendido, que de algum modo ajeito,

sem volições, que em versos não se externam.

Sou servo de meus pais, fiel criado,

bem obediente aos textos que me impõem:

se me retraio, empregam o chicote...

E é por isso que os trato com cuidado,

que os pensamentos que à boca me interpõem,

são mil serpentes a desferir seu bote!...

ESPERA INÚTIL XII

Mas não é inútil aguardar os meus fantasmas:

são companheiros divertidos e constantes;

monotonias tornam deslumbrantes;

hipocrisias escoimam de miasmas...

E a alma inquieta que, comigo, espasmas,

na leitura de cem sonhos delirantes,

por mais que se contenha em mil instantes,

cedo ou mais tarde junto a mim orgasmas.

Porém, nada me resta para dar,

porque tudo já dei, no meu porém:

tornei-me escravo destes sonhos nus.

Também não quero mais amor cantar,

que tudo já cantei, no meu também

e me desfiz, num turbilhão de luz...

VÉUS DE TULE VII

Escorre o quarto véu, chega o ciúme,

sempre que em outra o homem passa o olhar:

não é que o ame ainda; é por achar

que deva apenas dirigir-se a seu perfume.

E ela dança, no despeito do azedume:

quer os zelos de si própria despertar;

diante de outro volta o seu girar;

pelo canto dos olhos, cuida o lume

que aparece na expressão do pretendente.

Passou o tempo de fazer-se indiferente,

porque é mulher e quer ser desejada...

E em dança rodopia, nos salões,

trocando pares pelas multidões,

mas só por um almeja ser amada...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 13/06/2011
Código do texto: T3031752
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