CONTRATO / ALUMBRAMENTO / HIPODERMIA / APARÊNCIA

CONTRATO I (8 AGO 79)

Não são os teus amigos, amor, que nos darão

um leito de desejo, um teto de carinho,

um beijo de alforria, um sonho comezinho,

que a alma refrigera e aquece o coração.

Olvida essa esperança, amor, que caro preço

teremos de pagar por mínimos favores:

talvez compartilhar da causa dos amores,

talvez nos humilhar a demonstrar apreço...

É a nós que nos compete achar a solução,

porém sem negativas: que simples emoção

domine nossa vida, sem que nos cause danos.

No triunfo singular e simples da esperança,

sem nunca disfarçar ao outro esta aliança,

apenas envolvidos no retraçar de planos.

CONTRATO II (14 OUT 10)

Não serão os teus sonhos, amor, que te darão

um alguidar concreto para ovos e farinha

ou uma caçarola com T-Fal, pretinha,

em que teus alimentos difícil grudarão...

Não serão pesadelos, amor, que guardarão

qualquer realidade que a vida te acarinha:

são apenas fogos-fátuos que a noite te avizinha

e quando recordados, não mostram gratidão.

A vida é mais complexa do que qualquer ideal

e sonhos são inúteis, quando não há projetos,

por mais seja difícil cortar da vida os nós...

Que fique então bem claro e muito natural

que não se encontra amor por sob alheios tetos

e o bem só alcançamos quando se corre empós.

CONTRATO III

Quem nos deseja o bem, amor, somos nós dois:

os outros nem se importam ou são até contrários;

na vida é natural achar adversários,

porem ajudadores é mais difícil, pois

cada um quer o seu lucro buscar e só depois

de preenchido o cofre do material sacrário

irá pensar em nós -- é raro o perdulário

e quem nos ajudar, só alugará os bois

que usar para puxar a nós de um atoleiro...

E assim é a esperança -- egoísta e fugidia,

que só parece amiga em aceno de bonança...

Somente quem planeja encontrará primeiro

o evento singular de aurora e nostalgia

jungidos finalmente no bem que então se alcança.

ALUMBRAMENTO I (30 ago 79)

Teu beijo foi meu destino, jogado no mesmo instante

Que o fado mui casualmente, que o fado tão zombeteiro,

Os dados sobre a roleta, da vida no tabuleiro,

Jogou sem pensar em nada, sem qualquer valor constante.

Apenas por desatino, apenas por desfastio,

Apenas porque desejo nos olhos nos descobriu:

Fez-nos sentir um do outro, no mesmo olhar que luziu,

Colhidos na mesma rede, tecida de igual feitio...

Tecida de desenganos, tecida de maus ensejos,

Que nunca ganharam nada, que nunca granjearam beijos,

Mesclados sempre de medo, vazios, sem aceitação...

Nesse véu imarcessível, nesse altar feito carinho,

Metade perdão completo, metade rancor mesquinho,

Que em beijo puro enleou-nos, nas cordas do coração.

ALUMBRAMENTO II (19 out 2010)

Teu beijo foi meu encanto, suprassumo de emoção,

beijo de funcho e de anis, madressilva de perfume,

a tua pele transparente, calidez de vagalume,

um fogo-fátuo afinal, imitando a perfeição...

Mas foi surpresa e destino, um ideal de sedução,

que a alma me acorrentou para meses de azedume,

porque não se concluiu, foi amor feito desfume,

esse amor de marionete que manipula tua mão.

Nesse beijo rosicler, nessa aurora de segredos,

talvez eclodiu minha alma, que no limbo ainda jazia,

puxada por tuas correntes desse poço de degredos.

As cordas rútilas veias, trançadas pelos teus dedos,

como um cabo bipolar, que me traz tanta energia

que nem sei se vivi antes ou se nasci nesse dia...

ALUMBRAMENTO III

Teu beijo foi minha surpresa, que eclodiu no mesmo instante

do momento inesperado, do momento condoreiro,

teu rosto junto do meu, a marca no travesseiro

que não quero desmanchar, por mais que seja inconstante.

Teu beijo foi meu arco-íris, após chuva trovejante,

minhas carnes ensopadas pelo fado zombeteiro,

minha alma retorcida por engano interesseiro,

esses teus lábios de rosa em lembrança delirante...

Ah, beijo que lembra tanto! Que guardo no coração

a delícia de teus dedos, a pele toda eriçada,

num momento de capricho, em hora de pleno espanto,

o aroma de teu hálito a encher o meu pulmão,

momento de azul e rosa, de malícia rebuscada,

para ti um quase nada... Para mim, valendo tanto!

HIPODERMIA I (08 AGO 79)

Eu tenho muito medo de te rever agora:

Tu foste tão gentil em nosso último encontro;

Meu coração se ungiu do roseazul da aurora,

E temo, sem mais pejo, o nosso desencontro.

Já não posso esperar que chegue teu momento:

Talvez sejas assim, mas sou-o, permanente;

Dominas de meu ser o claro pensamento

E habitas dentro em mim de forma tão pungente!

Eu me exaspero e murcho ao ver-te indiferente,

Por afetar, talvez; talvez só por capricho,

Por me atiçar, quiçá; quiçá por artifício,

Por me deixar quem sabe; quem sabe de contente,

Por me saber seguro no mesmo amor que esguicho,

Em mil e mais sonetos, de puro e austero vício.

HIPODERMIA II (13 OUT 2010)

O medo continua de que não seja igual

a minha expectação de pele contra pele,

a minha expectativa de um beijo que me sele

dentro em teu coração, em sonho inatural.

Eu tenho muito medo de abraço tão fatal:

talvez seja sugado e, assim, eu me revele,

por baixo de tua pele, depois que me encastelo,

ser menos meritório de teu amor total.

E ainda me exaspero ao ver tanto adiamento,

como as coisas demoram, assim, a se encaixar,

por querer enquistar-me e então te pertencer,

Por me entregar, quem sabe, ao mesmo encantamento,

por me saber sujeito ao mesmo cintilar,

por ser parte de ti, quiçá, até morrer.

HIPODERMIA III

Ou talvez eu me sinta bem mais uma seringa

e me injete por inteiro por sob tua epiderme,

serei um hematoma, talvez, sobre tua derme,

serei uma tatuagem que o próprio amor me vinga,

serei uma vacina a qualquer estranha ginga,

contra esse amor estranho, igual mosca de berne,

contra outro pretendente que em teu olhar se interne,

contra qualquer piropo que em teus ouvidos pinga...

Por isso é que me vejo por baixo de tua pele,

como há muito te encontras no interior da minha,

mulher inesperada por quem esperei tanto.

Por isso é que desejo que tal amor nos vele,

amor de minha espada, amor de tua bainha,

por que cravei em ti as gotas de meu pranto.

APARÊNCIA I (31 ago 79)

os meus sonetos ficaram infelizes

por dois motivos: primeiro, eu sou amado;

paradoxal que seja, o atribulado

coração só produz versos felizes.

quando um ideal romântico é achado,

daquilo que impossível nos parece,

cada soneto é uma emissão de prece,

louvando o beijo sempre protelado.

mas depois de encontrar correspondência,

ainda embora nos vejamos com frequência,

amor não possa inteiro consumar-se,

talvez melhor me fora indesejado

permanecer... em outros versos consolado,

que tendo tanto amor, siga a abrasar-me.

APARÊNCIA II (17 out 10)

já anteriormente a dúvida expressei

sobre o que era importante para mim:

amor sentir, sem receber, alfim,

mas dar-te quantos versos já te dei

ou, ao contrário, perceber que amei

mulher de carne que me ama assim,

que sente orgasmo comigo até o fim,

que tenha em carne qual se a desposei.

se tenho o corpo, em plena madurez,

para onde foi o espírito que amava?

essa doçura feita de degredo,

de espera, de impaciência e maciez,

em que o desejo permanente me atiçava

a descrever amor como um segredo...?

APARÊNCIA III

e mais ainda: não é a melancolia,

os mil arco-íris de uma rejeição,

que mais desperta lirismo ao coração,

nessa epopeia da dor que se sentia?

muito mais versos há de nostalgia

do que a descrever satisfação.

sem dúvida, uma erótica paixão

já descrevi nos versos que fazia,

mas quantos mais fizeram desta forma?

amor sensual classificam de erotismo,

amor sexual como pornografia...

enquanto o amor que foi e não retorna

é o embasamento final do romantismo,

em sua canção mesclada de elegia.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 13/06/2011
Código do texto: T3031768
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.