HISTORINHA DE AMOR & MAIS

HISTORINHA I (26 AGO 79)

Aqui eu contarei não mais que uma historinha,

Que pode ser verdade, que pode ser apenas

A fábula engendrada ao coração, em cenas

Que tanto se queria não fossem mentirinha.

Agora eu cantarei um rebrotar de vinho,

Rebrilhando de aroma em dentes de saliva,

Borbulhante no sangue, o coração cativa

E prende num grilhão de beijos de azevinho.

Que cor não têm os beijos transitórios,

Salvo a cor mesma dos gestos merencórios

Que empresta a alma aos olhos da menina,

Revolta em seus abraços desvalidos,

No orgasmo amolecida e nos perdidos

Beijos de anil que o coração fascina...

HISTORINHA II

Começa assim a história: dois amantes

Que não se podem ter, mas se desejam

E às furtadelas, com temor, se beijam,

Talvez por mais temer, mais delirantes.

E os dois se encontram às vezes e exageram,

Prolongam seus encontros sem medida,

Saem com a boca e a alma dolorida

E por não se possuir, se dilaceram.

E os meses vão passando, odiar se querem,

Mas não conseguem, seu ardor persiste

E se conserva na alma, pois consiste

Em algo mais que humano despautério:

Rancor não tem lugar, ao conhecerem

Tão puro e fresco ideal de refrigério...

HISTORINHA III

E então castiça uma cisão ocorre,

Colateral do romance rebrilhante.

Nos olhos do rapaz, tão delirante

É seu amor que o corpo não socorre

E não consegue, em olhos de desejo,

Rever essa mulher que quer demais:

Seu coração ergueu-lhe pedestais

E, por amar, desdenha de seu beijo.

E ela sofre com isso, que é mortal

E seu desejo é muito mais carnal

E feito de prurido ideal secreto.

E ao ver que não insiste, rejeitada

Também se sente e o coração inquieto

Se anestesia em mil cristais de geada.

HISTORINHA IV

E, de repente, diz não mais desejo

Sentir de tê-lo e que mesmo repelente

Sua boca encontra, assim, tão de repente,

Numa repulsa e nojo do seu beijo.

E ele sente uma dor profunda e nova,

Não que uma dor igual nunca sentida

Tivera ao coração... Porém, na vida,

Nunca encontrara a situação de trova

Que encontra agora... E a dor é tão fininha,

Que nalma se dilui, calma e furtiva,

Se expande e se desata, tão mansinha,

Se instala em todo o ser, em tal esquiva

E líquida emoção, quase impassiva,

Que a própria alma nalma se amesquinha.

HISTORINHA V

E então, passados meses de salsugem,

Há um reencontro, súbito e espontâneo

E o brotar do desejo momentâneo

É uma implosão no olhar, de tal selvagem

Contato de esplendor, que essa mensagem

De um estertor real, tão subitâneo,

Lateja num pulsar, dentro do crânio,

Que desce ao ventre, em sã libidinagem.

E o corpo todo então de amor se agita,

Passada a fase antiga, tão bonita,

Se faz em giesta de medieval história,

Rompido o cinto, enfim, da castidade,

Despida a cota e o elmo da vaidade,

Num beijo carmesim de alfanje e glória!...

HISTORINHA VI

E o beijo tem sabor de especiaria:

Num sofá negro as pernas que lhe abria

Entrega num ideal total de abrigo,

Após o beijo antigo de ambrosia

E o beijo novo é néctar potente,

Tão natural nos dois, tão diferente,

No beijo novo, se vinga o beijo antigo

Que um dia foi achado repelente.

Pois quem bem lhes almeja, então se afasta,

Autorizando a cópula mais casta:

Que o coração do coito participa.

E assim partilham beijos de cerveja,

Beijando a boca feita de cereja,

Trazendo o aroma e o gosto da tulipa.

HISTORINHA VII

E tudo agora faz-se diferente:

O mundo de valor circunjacente

Se enche de novel significado

E todo o arcano torna-se aparente.

E os dois se encontram mais, sem mais segredo,

Turgiu-se de esplendor o azul degredo,

Que um dia separara, atribulado,

O duro peito do peito puro e ledo.

E a dança se inicia, finalmente,

Enquanto a melodia, mansamente,

Macia brota em um par de corações,

Vencida a adolescência protendida,

A carne aceita, amada e requerida,

No mesmo e leve adejo de ilusões.

HISTORINHA VIII

E agora, bebem vinho de azevinho,

Sua polenta é pólen redesperto,

O seu amomo é cardamomo aberto

E todo o beijo, um adejo de carinho.

E agora, o seu ninho é rosmaninho,

As suas narinas, sinas multicores,

As suas almas, palmas poliflores,

Dulcímeras quimeras no caminho.

E cada desafio, um fio de ouro,

E todo riso, um crisopraso altivo,

Toda alegria, uma agridoce aurora...

Os seus agoras, horas sem desdouro,

Toda emoção, unção de redivivo

Clamor de amor, que não conhece embora!...

IRRELEVÂNCIA I (31 AGO 79)

Queria compreendesses o quanto dentro dalma

Eu sinto por te amar, assim, de corpo e alma,

Eu sinto por querer-te enfim, em plena calma

Desta certeza aflita do mesmo amor antigo.

Que exponho o coração ainda a outro perigo,

Que ousando assim te amar, nessa ousadia certa,

A vida então te arrisque a pena e dor incerta...

Que em todos nossos atos devamos ter alerta

Guardar o coração: que assim dissimulemos

E nossos sentimentos sem mais razão guardemos

Na capa de um prazer dissimulado e frio...

E nessa ação vulgar, comum, de desvario,

O nosso amor se avilte e, então, nos entreguemos

A encher de carne o bem que amor deixou vazio.

IRRELEVÂNCIA II (22 NOV 10)

Queria compreendesses quão grande é a solidão

que sinto de teu lado, por mais sejas fiel,

mais a ti mesmo que a mim, abelha e mel,

enquanto me pressinto tão só como um zângão.

Se exponho o coração, agora, e meu burel

afasto de meu peito, o cíngulo e o cordão,

que esconde o sentimento amorfo de paixão,

porém que permanece assíduo e infiel.

Não infiel a ti, mas a mim mesmo,

por tanta desistência assim do sonho antigo

que a alma recobrira em luz de polvadeira

de estrelas uma vez, aerólitos a esmo,

cobrindo a vestidura na prata do jazigo,

que olho para trás e vejo em minha esteira.

IRRELEVÂNCIA III

E todo esse penar é pura irrelevância:

nenhuma dor aguda, só mofo em terciopelo,

nenhuma acusação de falta de desvelo,

apenas percepção de esvoada quintessência,

enquanto se procura, em vão, com muito zelo,

manter a sombra antiga nos braços, essa essência

de que mal se recorda a velha onipotência,

quando os cristais de lua tornaram-se de gelo.

Que importa a carne, afinal, se a sombra esvai

e quanto mais se amava tornou-se só nevoeiro,

dissolvido em prazer, remexido de orgasmo...

Esse amor permitido, que sobre o peito cai

enquanto esmaecido quedou o sonho primeiro

metade incompreensão, metade em meigo pasmo.

ENCAIXE I (28 AGO 79)

Depois de um ano e mais de lenta espera,

Em que minha própria incúria me afastava

E a quanto mais queria me negava,

Toquei de leve a fímbria da quimera.

Depois de um ano e mais de desajuste,

De circunstâncias mudas contra nós,

Sorriu-se o fado ao desatar dos nós,

Completando a ilusão sem mais embuste.

No aquecimento lento dos abraços,

Teus olhos sobre os meus, teus olhos baços,

Quase apagados, mornos de lixívia...

Na singular magia de teus traços,

Antes comuns e, agora, nos meus braços,

Transfiguradas jóias de lascívia...

ENCAIXE II (23 nov 10)

Depois de um ano e mais, eu percebi,

no redemoinho das elocubrações,

no catavento das desilusões,

até que ponto me apeguei a ti.

Depois de tanto escrito e quanto li,

como são vastas as assombrações,

que em luz diurna são percepções,

mas que em horas noturnas nunca vi.

Depois de te ver longe e ver-te perto,

em doce pesadelo, ideal deserto,

eu percebi a luz que suave brilha,

não em fulgor de mágica paixão,

não no temor da pura escuridão,

mas tão somente teu rosto ao fim da trilha.

ENCAIXE III

O ano e meio de meu coração,

marcado no capricho da ampulheta,

foi lenta gestação, planta secreta,

na clepsidra de minha brotação...

Os pingos descem nos canos, sem paixão,

como a areia que escorre para a meta,

mesmo o gnômon, luz em linha reta,

marcou-me horário diverso da emoção.

O tempo escoa, destarte, como a areia,

mas são meus dedos assim esfarinhados,

sombra de alma a luz que o peito sela.

E é meu sangue que percorre, veia a veia,

esses mecânicos tubos, calculados

para medir o sorriso de uma estrela.

INEXPERIÊNCIA I (31 ago 1979)

O mais lindo do caso é que não sinto

Mais que alegria ao ver ideal adiado,

Tal qual se virgem fosse, sem cansado

Sentir o corpo gasto de absinto...

Minhas tensões se foram: renasci!...

Junto de ti, quais jovens namorados,

Meus membros se amolecem, de encantados

E no teu beijo leve me perdi...

E esse hesitar que tanto magoaria

Ao meu verdor apenas pequenino,

De vinte anos, rejeição que sentiria,

E as frustrações que amor adulto trairia,

Tomo por golpe meigo do destino,

Pois junto a ti retorno a ser menino...

INEXPERIÊNCIA II (12 dez 2010)

É como se meu canto renovado

partisse da garganta das gaivotas,

meu estridente canto, rudes notas,

antes do timbre ter bem empostado.

Embora busque praias ignotas,

meu canto para ti foi projetado;

se em algum ponto seguiu o rumo errado,

foram as brisas que tomaram novas rotas

a seu próprio capricho e outros ouvidos

(a que talvez estivessem destinadas,

por mais que eu mesmo nunca os contemplasse)

foram tocar, com seus sonhos embutidos,

em cada canto as notas marchetadas,

sem que o piloto virgem te alcançasse...

INEXPERIÊNCIA III

Junto do leme te espero, esse adiamento,

já repetido mil vezes no passado,

serve talvez para manter-me hasteado

meu galhardete de casto sofrimento.

Mais um pendor de estético momento,

sem essa busca sofrível pelo adiado,

seria meu canto muito menos inspirado,

quebra-cabeças de espúrio sentimento.

Apenas te beijei de leve e teu respiro

conservo no meu peito; e te auscultei

gentis mamilos de botões rosados.

Mas em tua ausência cresce o meu suspiro,

ao perceber que somente conservei,

no céu da boca, dois astros encarnados.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 18/06/2011
Código do texto: T3042274
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