HIATO / AUTO-CENSURA / SEGURANÇA / TABAGIA

HIATO I (31 AGO 79)

Apenas quem te ame te pode compreender,

Minha cara amiga; e perdoar-te o teu querer,

Tão solitário e mudo, no mesmo distender

Da carne pelo ideal, da mente por dever.

Apenas quem te ame e queira dar-te abrigo,

Tomar-te sob as penas, livrar-te do perigo,

Que trazes dentro dalma, que já nasceu contigo,

Que nunca rebrotou, que já morreu de antigo.

Apenas quem te ame e veja tudo e queira

Amar-te mesmo assim, amar-te pela poeira

Que trazes aos cabelos, a longa polvadeira...

Apenas quem te ame e o mesmo ideal pressinta

Apenas quem te ame e rancor por ti não sinta

E por te querer bem, de ti nada requeira.

HIATO II (1º. JAN 2011)

Apenas quem me ame compreenderá também

o hiato que ainda quero causar em minha vida,

apesar de minha idade, buscar a despedida

das peias que me atam, empós um novo bem.

São coisas materiais aquelas que se têm

e pesam quais grilhões, que levam de vencida

a busca multicor da aurora florescida,

a luta turmalina contra o dever que vem.

Não espero que me ames, sequer que me conheças,

só quero dentro em ti memória despertar

das grandes esperanças tornadas em derrotas,

dessas surpresas boas que talvez até esqueças,

por cheiros do passado quiçá lacrimejar,

ou desses toques douro que sem querer desbotas.

HIATO III

Apenas quem nos ame nos pode acobertar

anseios e lascívias diárias e transientes;

a vasta multidão das invejosas gentes

de fato até prefere ver nosso derrotar...

Não digo sejam todos que vivam a invejar:

na grande maioria, são só indiferentes,

só buscam o próprio bem, como fácil pressentes

e o centro de seu mundo costumam ocupar.

E pouco estão ligando se vivas ou se morras...

Sei quem ler estes versos irá me dar razão.

Se olhar o coração, de fato, não se importa

com a sorte que possuas ou riscos em que incorras.

Apenas quem nos ame com puro coração

lastima quando o sonho imaginado aborta.

AUTO-CENSURA I (02 ago 79)

Certas coisas existem, que até fisicamente

Parecem-me impossíveis: o ódio, por exemplo,

Exceto de um momento; o rosto que contemplo

Posso enxergar envolto em véu vermelho e quente.

Talvez nesse momento, a frase de rancor

E mesmo a violência domine o julgamento

E torne-se possível; porém o turbulento

E inquieto coração restrinjo com torpor.

E logo ultrapassado o assomo de arrepio

O ódio tremeluz e esvai-se em mil tremores,

Embora internamente retorçam-me estertores.

Mas o punho entrecerrado, em gesto fugidio,

Deixa de ser crispado e assim não mais remói

O ódio dentro dalma que a própria alma destrói.

AUTO-CENSURA II (1º. jan 2011)

Anos passados, quando a sepultura

ter-me dado acolhimento até podia,

eu permaneço com a mesma ideologia:

o ódio ao ódio dentro de mim perdura.

Senti raiva e rancor, coisa segura,

mas abrandados por fintas de ironia:

depois de um tempo, a boca sempre ria

do lado cômico da emoção impura.

E nem é que perdoe e nem que esqueça:

apenas ponho de lado essa impostora,

que me pretende esmagar qual anaconda

e não permito que tal miséria cresça:

fica só lá no fundo, a caçadora,

à espera de ocasião para outra ronda...

AUTO-CENSURA III

Então, pode saltar de seu cantinho,

armada e reluzente para a luta,

aranha à espreita do interior da gruta,

quer dominar-me a mente sem carinho.

Pois novamente, sei quebrar o espinho:

minha alma maus conselhos não escuta,

mas a repele, mesmo à força bruta

e a prende seca em mil faixas de linho.

Que o ódio é múmia vinda do passado,

instinto apenas e força primordial,

que eu sempre soube avassalar com calma.

Só que, às vezes, me pergunto, atribulado,

se esse domínio de uma força natural,

bem de mansinho, não me enfraquece a alma...?

SEGURANÇA I (31 AGO 79)

Tu queres ver? Teremos bem completo!

Sem mais temor de amor, doce e irrequieto,

Teu corpo no meu corpo, nessa entrega

Que só se alcança no mais profundo afeto.

Tenho certeza! E mais, que será breve,

Que teu temer que à entrega não se atreve,

Salvo o furtivo e tênue que se apega

Às carícias que se rouba em toque leve,

Que de repente, se esfarela qual granito,

Nessa implosão solene de teu grito

De ardor e de amplidão, quase rugindo,

De minha garganta as cordas percutindo,

Lançado assim, no gozo tão bonito,

Em que a alma mesma vai-se descobrindo!

SEGURANÇA II (2 JAN 11)

Passados tantos anos, vejo agora

que te consigo ainda dar prazer...

Que o conselho antigo obedecer

ainda faça, qual o fiz outrora.

"Não levantes do leito, na tua hora,

sem mais ou igual prazer oferecer

à tua companheira do que ter

o teu orgasmo somente e ir embora."

Este conselho recebido um dia,

nem sei se lido ou de outrem escutado,

procurei realizar por toda a vida,

no amor individual, sem ter orgia,

à todas que na vida tenho amado,

enquanto o tempo não me leva de vencida!

SEGURANÇA III

E assim se move o corpo, lentamente,

na passagem do tempo e em tua presença.

Minha vida sexual foi bem extensa

e não me posso queixar, pois certamente

foi mais frequente que as da maioria.

Passam-se os anos e o impulso permanece:

fazer amor é ladainha e prece

e quantas vezes segui a romaria!...

Contudo, se passar a limpo os dias,

esse conselho cumpri até demais:

com todas a mulheres com que estive

sempre busquei lhes dar mais alegrias,

em mil orgasmos desgastados no jamais,

sabendo dar prazer bem mais que tive.

TABAGIA I (27 ago 79)

Perfeita és para mim, salvo o cigarro,

De corpo e de entender, fiel sacrário

De quanto sinto e penso, relicário

De meu profundo ideal, deusa de barro!

Que assim sejas: perfeita em teus defeitos,

Que humanos tanto são, teus desencantos,

Nas gradações secretas de meus cantos,

Descritos tanta vez, com meus respeitos...

Mas o cigarro é um mal desnecessário,

Tira do olhar o brilho e, de pigarro,

Torna tua voz sensual em frase rouca...

Não que me faça mal: bem ao contrário!

Bem grato devo ser, pois teu cigarro

Torna meu beijo doce na tua boca...

TABAGIA II (7 jan 2011)

E embora os beijos sejam mais escassos

e se tenham tornado mais casuais,

na convivência que durou demais,

ou por achaques ao longo de teus passos,

o tempo passa e me vejo ainda a braços

com as mil aspirações ocasionais,

não de minhas musas dos páramos astrais,

mas da fumaça que te distorce os traços

e sinto em mim os vestígios do catarro

que me provoca tosse, ainda não fume,

sem qualquer dúvida se trata do pigarro

do não-fumante que fumante assume

e assim percebo teu amor pelo cigarro

muito maior que de meu beijo o lume!

TABAGIA III

São ironias da vida... Que eu acabe,

só por sorver fumaça de tua boca,

a expectorar e sofrer, minha voz rouca,

embora eu mesmo nunca tenha fumado.

Tens nojo da saliva que eu te babe...

mas não desgosto pela queima do passado

ou a saúde que hoje arrisco do teu lado

e a meus reclamos fazes-te de mouca...

Talvez tu nem percebas a que ponto

esse teu tabagismo me desgosta

e como acende o meu ressentimento.

Nada mudaste, no meu desaponto:

o teu cigarro minha saúde arrosta,

talvez mostrando até contentamento!...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 19/06/2011
Código do texto: T3043730
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.