AMORES E ILUSÕES

VERSOS MORTOS I

Eu tinha um deus. Um deus bem pequenino,

que até cabia na palma de minha mão,

um deus magrinho, de chumbo, masculino,

mas dotado mesmo assim de compaixão.

Era um deus inconsciente, sem paixão,

um deus cinzento, como o som do sino,

deus pobrezinho, baixo-relevo fino,

a cumprir de mau grado sua missão...

Um triste deus, de dúvida composto,

gravado outrora no meu coração,

à custa de insistência e mandamento...

Um rei que nada faz, sempre indisposto,

de bênção incapaz ou maldição,

mas arraigado no meu julgamento.

VERSOS MORTOS II

Era um deus fino, relevo de medalha,

dourado sem ser ouro. De latão...

Mas seu valor vetor maior entalha

na correntinha junto ao coração...

Perplexo este deus, um deus de palha,

desencarnado de sangue e de pulmão,

um deus carente, sem qualquer perdão,

desmerecendo a dúvida que espalha...

É claro que não tenho... Nunca usei

sequer aneis, quão menos medalhinhas,

fossem belas ou não. Meus deuses eu benzi

e quando me quiserem, eu irei

para estas deusas de bênçãos mesquinhas,

os meus fantasmas pelos quais sofri.

VERSOS MORTOS III

Melhor seria talvez nem te encontrasse;

não mais te visse, porque, de cada vez

que te encontro de novo, é mais um mês

em que me esqueço de ti, até que vá-se

anestesiada a lembrança; e isto dá-se

mui lentamente. Aquilo que se fez

ou, mais precisamente, se desfez,

é renovado sempre por tua face...

É preferível, portanto, nem te ver,

senão na mente. É nela que te encontras

parte integrante das redes minhas neurais.

Mas é outra que habita em meu querer:

Simples imagem com que me recontras,

a pura imagem engastada em meu jamais.

VERSOS MORTOS IV

Foste bem mais para mim do que és agora

e sabes muito bem o quanto foste...

Quando me olhas, percebo te desgoste

saberes do querer que foi-se embora...

Querias ainda fosse como outrora:

no centro de meu mundo te impuseste,

em véus envolta, meu amor quiseste,

que se rasgaram todos nessa hora...

Porque, afinal, foste tu que enfraqueceste

a intensidade desse amor perfeito

e o transformaste em sonho comezinho...

Ele está ali, coitado! Não perdeste

totalmente o domínio, em mel e vinho,

do amor mirrado que ainda trago ao peito.

VERSOS MORTOS V

Quando eu a amei, mantive olhos abertos:

nem sequer por momentos eu fui cego.

Tive esperança, é certo. E jamais nego

que pensava seus desejos ter despertos...

Mas os truques da mulher são mais espertos

do que alguém, como eu, buscando apego.

Não o gozo temporário de um achego,

que esvai-se e deixa os corações desertos...

Sempre soube que por mais a desejasse

o resultado final não ganharia...

Até hoje ainda nem sei por que falei!...

Escapou-me, somente, ânsia de enlace,

porque esconder bem sei que poderia,

mas fui ingênuo e amor lhe confessei...

VERSOS MORTOS VI

Eu canto a borboleta de Shanghai!

Se cada ação tem sua consequência,

se cada canto tem a sua potência,

então cada palavra de ti sai

e é levada pelo mundo... E nele vai

modificando eventos com frequência,

tratando os atos com efervescência,

até que o mundo noutro desvão cai.

E existe em ti igual poder também,

que cada pensamento é vivo e tem

o poder de criar bem ou falsidade.

E como é responsável um poeta!

Concebe o mundo em seu afã de esteta

e torna o falso em plena realidade...

VERSOS MORTOS VII

E já pensaste no poder que tens?

Muito mais forte até que uma oração

dirigida a qualquer deus imarcescível...

Essa energia de criares novo mundo...?

Então, controla. Em sentimentos vens

derramar-te sobre o plano de atração:

cada palavra de sabor imperecível...

Seu efeito será bem mais profundo

do que pensavas. O mundo assim criado

dependerá de teus íntimos quereres...

Controla teus desejos... Pensa bem

qual o mundo que queres, qual porém

será aquele que a ti mesmo concederes,

pois sobre os outros será também forçado.

VERSOS MORTOS VIII

É assim com os portais. Túneis cavados,

que nos conduzem do mundo corriqueiro

para outro mundo mais duro ou mais ligeiro,

bem mais rápido que os caminhos palmilhados,

passo após passo, pois são localizados

no microcosmos quântico. O elétron certeiro

vai de um ponto a outro, condoreiro,

num instantâneo saltar dos consagrados

espaços intermédios, pois que nem o espaço

e nem o tempo percorre, apenas vai

e chega ao novo ponto, inesperado;

e assim ocorre a ti, quando o cansaço

ou a inadvertência te chamam e se cai

no novo rumo que tua voz tinha invocado.

VERSOS MORTOS IX

De certo modo, foi o deus inútil

que te trouxe de volta, sem despeito.

apenas me cruzando, sem direito

sequer a um beijo de cumprimento fútil...

Mas a sombra de ti era inconsútil.

folhagem negra, sem quadris, sem peito,

correndo na calçada... E, desse jeito,

guardei-a para mim, em gesto dúctil...

Enrolei a tua sombra quando foste:

guardei no coração, bem distraído,

quando a devia ter jogado fora,

sabendo bem, por mais que me desgoste,

que não vou te esquecer, após ter sido

conquistado outra vez naquela hora...

VERSOS MORTOS X

Nasci humano e poderia ser gaivota,

foi pura sorte ou foi determinado?...

Sou responsável ou apenas, descuidado,

aceitei as consequências que denota

a condição humana? E quem me dizem dota

a humanidade de um espírito sagrado?

Se a gaivota eu fora destinado,

quem o espírito maneja e em carne bota?

E haverá por aí, livre voando

uma gaivota que ter sido eu pudesse?

De vida curta, mas do mar senhora...?

Ou quem sabe, me estarei precipitando

e o destino de ave que eu tivesse

fosse o do abutre que a podridão devora...

VERSOS MORTOS XI

Do deus supremo bem sei ser ferramenta:

não me cumpre fazer a minha vontade,

mas somente o que quer a divindade,

que para isso meu destino orienta...

Mil gerações de almas acalenta,

meu cérebro inconsciente, em saciedade:

cada uma delas teve a sua verdade,

a todas elas meu espírito apascenta...

Cada um de mim amou deuses diversos,

amou e foi amado em justa causa

ou desprezado pelos seus irmãos.

Reúno em mim tais corações dispersos

e os ponho a trabalhar, sem dar-lhes pausa

em cada obra que encontro entre minhas mãos.

VERSOS MORTOS XII

Todos falam que, passada certa idade,

quando fanou-se a beleza e a juventude,

para manter a atração que ainda a escude,

a mulher se faz bruxa por vaidade,

passa a fingir ou adquire, de verdade,

poderes anormais e o povo ilude.

Não mais encanta, quando se desnude

e em trapos negros se reveste de maldade...

Às vezes, penso que comigo ocorre igual:

que perdi minha atração, ficou bem claro

e em versos de erotismo me perdia...

Ao abstrato recolho-me, afinal,

buscando seduzir, em sonho raro,

em novos versos de pura bruxaria!...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 06/07/2011
Código do texto: T3078118
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