ESPELHO DE AZINHAVRE & MAIS

ESPELHO DE AZINHAVRE

Perfeita só serás quando te fores

para longe de mim. Procurarei

então me recordar que não gostei

disso ou daquilo nesses teus pendores...

E não acharei nada. Só os calores

que cresceram em mim e que gozei.

Da indiferença ou do frio por que passei

não lembrarei, somente dos ardores...

Mas eu sei que somente tu serás

o quanto deves ser quando partires:

o quanto vejo em ti e que não vês...

E que apenas a ti mesma encontrarás

bem distante de mim, quando sentires

a mesma perfeição em que não crês...

NOCTÍGRAFO

Não vivo bem durante o dia. É no calígero

fulgor opalescente das estrelas

que mais trabalho e que palavras belas

sei redigir ao público carnívoro,

que não me aceita bem, pois sou frugívoro:

o que eu fruo e aprecio são as telas

de um teor mais pálido, são as velas

semi-enfunadas, mas de sabor aurívoro;

que não falo do que esperam, quando escolho

escutar as minhas vozes, na atenção

de um atalaia que somente noticia;

são os poemas da noite que refolho,

enquanto outros que faço apenas são

cortesias a quem vive à luz do dia...

SPIDERMAN

[para Andréia Macedo]

Peter Parker amava Gwendolyn,

a loura filha do chefe de polícia;

todavia, em um momento de estultícia,

por uma aranha se deixou picar; e assim,

tornou-se o Homem Aranha; e n'O Clarim

foi atacado, em artigos de malícia,

pelo seu editor, Jonah Jameson e a fictícia

fama de monstro adquiriu por fim...

Mas por sorte, Mary Jane se tornou

de sua existência a última paixão:

salvou-lhe a vida e seu amor retém...

Assim queria eu, e amor cantou

que conseguisse, pendurado pela mão,

num fio de teia, te conquistar também...

EM SÍMILE BANAL

Meu tio falava sentir inspiração

quando queria dirigir-se ao vaso...

E aqui me encontro eu, no mesmo caso,

sentado na latrina, em exaltação,

enquanto o "eu fecal", sem ilusão,

se aventura aos esgotos, no embaraço

de um ato solitário... E eu mesmo faço

com que meu "eu poético", em calão

mais elevado, se aventure nas cloacas

da sociedade, que me exclui e excluo,

pois não pensamos juntos, certamente.

Meu eu fecal segue o destino das cacacas...

Pelo eu poético então me esforço e suo,

enquanto escrevo versos na patente!...

DONZELA BELA

Quando uma filha é bela, com certeza

que seja sempre bela se deseja

e que feliz se torne é o que se enseja:

que o amor sonhado aumente-lhe a beleza.

Quando se ama uma filha, que nos beija,

num amor puro e isento de vileza

e que nos trate com delicadeza,

sempre se quer que mais perfeita seja.

Mas não são qualidades que se ama.

Pode ser feia ou tola, o que se quer

É aceitá-la, tal qual como ela é.

Pois quem ama não julga, nem reclama

de seus caprichos, pois, sendo mulher,

é a borboleta de um gentil balé...

INCÓLUME

Em vezo zombeteiro me percebo,

excluído do mundo que excluí,

quando agir diferente decidi

do que ao entorno de mim observava.

Quando da taça da ironia eu bebo,

distraído desse mundo que traí,

como Neruda, "confesso que vivi",

sem condenar o quanto me rodeava.

Mas sendo diferente, que a exclusão

primeiro vem de fora e me endureço

e em bajular eu nunca me apeteço,

vivendo assim à luz da própria ética,

embora oscile ainda o coração,

que amaria bem mais as leis da estética.

QUEIXUME DE MIM

Estranho, quando leio o verso antigo,

tal se não o escrevera, já que esqueço

das emoções do momento que padeço

e que ficou atrás, qual se inimigo

eu fora do passado; mas, quando digo

o que pensava então e que enobreço

ou chocarreio, descrevo ou enalteço,

com bem maior freqüência que maldigo,

pois não zombo de ideais mais elevados,

porém me encontro tanto tempo defasado

do que escrevi então, no meu antanho,

mais me surpreende esse fulgor estranho

ou o teor tão simples do cansado

sabor de tantos versos empoeirados.

EM LUZ RECALCITRANTE

Preciso pôr em dia a imensa pilha,

que me emperra e me puxa para trás;

olhar o quanto cresce insatisfaz

e nem sei mais descrever a maravilha,

tomado de um sentido mais mordaz;

e me arrenego ao ver a velha trilha,

estufada desse verso, que não brilha

de igual fulgor com que já fui capaz.

Eles seguem brotando, como a linfa,

que, lentamente, recobre o ferimento

e administra a cicatrização,

tal como as ilusões que cria a ninfa,

dona inconteste de meu pensamento,

que gera as mágoas de meu coração.

HEMOPOESIA

É como um dente frouxo, uma ferida,

o que sinto por ti, gélido instante,

que se volta a tocar, nesse constante

cotucar dos desgostos desta vida.

A gente sabe que não deve; e avante

move-se a língua ou o dedo; é a lida

quase inconsciente da aflição sentida,

na transgressão de distração meliante.

Às vezes, tenho no nariz hemorragia,

quando menos espero; então o dedo

vai remexer na casca, sem cuidado,

provocando uma nova... e a nostalgia

é de igual modo remoída, sem segredo,

e sangra o coração, redespertado...

EM FRIA OBSERVÂNCIA

Percebo a vida como cerzir roupa

que não se quer perder, por confortável:

sempre surge um rasgão e não se poupa

o esforço de mantê-la apresentável.

E, dentro em breve, se abre outra costura:

refazer é preciso, tal que a vida,

por mais que se mantenha bem vestida,

pela opinião alheia, sempre é impura.

Porque, afinal, razões para auto-crítica

eu não preciso: me criticaram tanto!

Só necessito é de mais auto-confiança.

E nem tampouco possui valor de encíclica

a voz dos outros, em invejoso canto,

pois só do coração basta a esperança.

REENCONTRO

(para Orfelina Costa Sais)

De olhos abertos, bem serenamente,

despede-se do mundo a dama antiga,

aglutinada ao mundo permanente:

que nova e mais gentil vida persiga...

Durante a longa estada, foi amiga

e demonstrou amor por tanta gente;

seguiu os passos do celeste auriga:

afastou-se de nós, tranqüilamente.

Agora que a necrópole consome

os seus restos mortais, que o corpo acaba,

de olhos abertos, enxerga o novo mundo,

em que experimenta a derradeira fome:

a quem de seu carinho ainda se gaba,

mais proteger, com seu amor profundo.

(William Lagos, 19 Fev 2008)

ENFRENTAMENTO

Foi-se, afinal, o que me incomodava,

há vários dias, de hesitar tamanho...

puxei a obstrução que lá se achava:

não era um grumo, mas apenas ranho...

Por dias hesitei, mais esperava

para evitar, enfim, que o corpo estranho,

que um coágulo de sangue acreditava,

ao ser movido, gerasse um novo lanho...

E quanta vez, na vida, já hesitei,

suportando um incômodo, em temor

de que, ao tocá-lo, pior me ocorreria...

Mas quando tomei ânimo e enfrentei,

vi desfazer-se a dúvida; e o pavor

desfez-se, sem trazer hemorragia...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 20/09/2011
Código do texto: T3229757
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