CHINA IV & MAIS

CHINA IV

O peão chega à casa e encontra a china

e o mate já está pronto, feita a bóia,

muda a cria na teta, rubra jóia

que se projeta dos seios da menina;

passa trabalho e nem lastima a sina,

nem tampouco tem inveja à lambisgóia,

que na casa do patrão, feito jibóia,

só come e dorme, deitada em cama fina;

porém demonstra bem maior carinho

por seu peão que a outra mulher rica,

bem sustentada por seu capitão;

água da sanga bebe, em vez de vinho,

mas lava a roupa, faz a cama e estica

braços e coxas no abraço da paixão!...

CHINA V

Ela mesma corta a lenha, de facão

e leva a trouxa de roupa pro varal;

aquece o banho, planta no quintal,

mata galinha, quando há precisão;

e quando se lastima o seu peão,

que ninguém pensa em levar ao hospital,

é ela quem o trata, bem ou mal:

quem ferve o cataplasma no fogão;

quem lhe troca o curativo com carinho;

quem lhe traz um chazinho e dá remédio;

e até o lava em banho de bacia;

e que, de noite, depois da dar caldinho,

outro remédio lhe dá que acaba o tédio,

que é do peão a única alegria...

CHINA VI

Mas existe outro tipo de chininha,

que consola o tropeiro de viagem

e nem lhe cobra caro essa vantagem:

a triste china que a todos acarinha;

que fica velha cedo, a pobrezinha,

que a dona do chinedo, sem coragem

de a mandar embora, dá a lavagem

ou a coloca ajudando na cozinha...

Quando tem sorte, arranja peão velho

e se aloja num ranchito de torrão

em que ele ainda trabalha de posteiro;

e se uma filha tem, o seu conselho

é que se esconda do filho do patrão

e mais ainda do olhar do fazendeiro!...

CHINA VII

Mas quando o peão velho desfalece,

depois que o padre leu comendação,

velório feito e após sepultação,

só resta à china repetir a prece;

se teve filhos, enquanto os piás cresce,

se o estancieiro teve dela compaixão,

continua de posteira no rincão,

cuidando o aquerenciado que aparece...

Mas se não teve, vai morar de esmola

no rancho de um parente, sem carinho:

vira criada, nos anos da velhice!...

Foi reprovada na vida, sem escola

e só lhe resta esperar um lugarzinho

ao lado do peão, que alguém lhe abrisse!

CHINA VIII

Agora a china dos negros cabelos

os têm grisalhos, como os da preá;

na casa de torrão, nem sequer há

um lugar especial para desvelos;

ela lava e penteia esses novelos;

porém emagreceu e não está

mais atraente pra quem passará;

mas eu a amo e ainda vejo belos

os seus olhos indiáticos de fada,

no mesmo tom castanho do passado,

a me espiarem das rugas, lá de trás...

Tudo isso não importa, não é nada,

pois, ao contrário, eu fiquei pesado

porém me dá carinho, assim no más...

ESTERTOR {início março 2007}

Não decidi ainda o que farei:

se vou dar aulas na universidade

ou se irei confessar incapacidade

para algo mais que indolência. Ficarei

deitado aqui, escutando o coração

palpitando ao calor, descompassado,

os ossos protestando, lado a lado,

com meus meniscos, em articulação.

Eu morrerei num dia de verão,

quando a opressão do mundo sem sentido

concluir o combate em que me abraso.

Eu morrerei logo após que uma ilusão,

a última a restar em meu olvido,

desidratar-se no esplendor do ocaso...

FORNALHA

É quando aquece que me sinto prisioneiro,

mais do que nunca, do túmulo carnal:

então essa opressão me esmaga inteiro

e me demonstra a que ponto sou mortal:

todo o corpo me dói, num derradeiro

esforço por sair do pantanal

desse calor mefítico e açougueiro

que me emascula e desmembra, num total

envilescer da mente e da paciência;

sou um tijolo no forno, sou vasinho

de argila, que se achava porcelana,

tão quebradiço nessa transferência,

que me basta encostar um fino espinho

para explodir em desbastada chama.

CANÍCULA

Esta foi uma semana cancerígena

para mim. As mudanças desse horário

nunca me fazem bem. O numerário

das horas em que durmo, essa indígena

vigilância fatal de dias sombrios

e de noites tão claras como o sol

é afetada na flor desse arrebol,

que me emaranha de um baraço aos fios

de minha vida. Depois, esses calores

me esvaziam o estro. E a própria alma,

cujas dores reumáticas se alçaram,

me assalta o corpo em mil e um ardores

e me esgota o cansaço. E vejo a calma-

ria em que os vácuos me alcançaram...

NATAL NO PAGO I

O Seu José da Silva Carpinteiro

e Dona Maria Betânia Nazaré

participam aos amigos que já é

a hora de nascer o seu primeiro

filho, que se vai chamar Jesus;

chegou o padrinho do Espírito Santo;

da Vila Paraíso veio o canto:

vinte anjos que lotaram o Aerobus;

o fazendeiro trouxe um maço de reais,

do vigário veio incenso de butiá,

mandou o prefeito mirra e manacá;

mas o presente que ele gostou mais,

para aquecer esses três corações,

foram pelegos trazidos por peões...

NATAL NO PAGO II

Jesus Menino cresceu numa fazenda:

o Seu José montou carpintaria

num povoadito que tinha a sesmaria,

que o fazendeiro precisava da prebenda,

quando quebrava uma roda numa senda,

quando o telheiro das galinhas se rompia,

quando um novo alambrado ele queria,

quando se abria na porta qualquer fenda;

o Seu José morava de favor,

mas era com a família mantenido

a consertar as carroças dos feirantes;

juntou uns pila, sempre com honor

e por todos os ranchitos era tido

como um dos moradores importantes.

NATAL NO PAGO III

Jesus cresceu sem muita liberdade:

ajudava o Seu José pela oficina,

Dona Maria lhe mantinha firme a crina,

buscava água na sanga em tenra idade,

cortava lenha no mato; na verdade,

só brincava aos domingos, quando a sina

não trazia um dos padre e a casuarina

testemunhava a missa sem vontade;

aprendeu de carpinteiro toda a lida;

se não tinha serviço, a peonada

ia ajudar, tropeava na manada,

ajudava a marcar, logo em seguida,

hábil em tudo a que aplicava a mão,

capava touro que nem qualquer peão...

NATAL NO PAGO IV

Na juventude seu primo, o João Batista,

metido com os sem-terra, lhes pregava

meter fogo aos ocalito adonde andava...

Logo a polícia lhe pegou na pista...

Mas muita gente o Primo João alista

e numa sanga em que ele se encontrava

apareceu Jesus, ver se escutava

sua pregação; e logo o andejo avista:

usava um xiripá e dois pelego

amarrados nas costas e comia

só gafanhoto quando não melava...

O Primo João, pelo sol já meio cego,

deu-lhe um banho na sanga e lhe dizia:

"Tu és o cara, tchê, que eu esperava!"

William Lagos
Enviado por William Lagos em 20/10/2011
Código do texto: T3288557
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