MAR DE VIDRO VERDE / INFÂNCIA PORTÁTIL

MAR DE VIDRO VERDE I - JAN 2009

Sei bem o que devia estar agora

a realizar. Trabalho ou desconsolo

tenho de sobra para encher meus dias,

mas o calor me esmaga e me devora.

Até mover os dedos desarvora,

enquanto a mente pinga sobre o solo.

As raízes dos cabelos são as vias

por onde o cérebro inteiro se descora.

E não me resta, no tempo da pobreza,

senão buscar, em minha desvalia,

os últimos resquícios de paciência...

Que a alma se esgotou, tenho certeza,

por cada poro notei quanto esvaía

e sonho apenas com sobrevivência...

MAR DE VIDRO VERDE II - 15 SET 11

Felizmente, a pungência do verão

de dois anos atrás, fez-se passado.

Guardei na pilha o original suado

e não desfilho os versos que me dão

os meus egos brotados do antemão,

mesmo que esteja bem mais aliviado,

neste mês de setembro, consolado,

antes que voltem para mim os dias de cão.

Guardo o passado em vidro de garrafa,

de casco duro e verde, um tanto opaco,

mas ainda com uma certa transparência.

E nessa pestilência que me abafa,

lanço um vidro ao assoalho e cada caco

de antigo inverno me traz certa leniência.

MAR DE VIDRO VERDE III

Meu passado está guardado em prateleira,

separado por meses e por anos:

garrafas verdes para os desenganos;

talvez para a esperança derradeira

conter essa tristeza corriqueira...

Queria ter as bilhas dos romanos,

de cerâmica opaca e, nesses planos,

conservar cada tolice e cada asneira...

Porque essas quebrar não pretendia,

apenas preservar da luz do dia,

enterradas numa adega ou num porão,

para evitar que após minha partida,

alguém as abrisse e assim, desprevenida,

as bebesse até afogar seu coração.

MAR DE VIDRO VERDE IV

Mas talvez tenha o pecado cometido

de ao invés de guardá-las bem seguras,

eu lhes tenha permitido suas agruras

infiltrar-se no verso redigido.

Embora muita vez tenha incluído

mensagens de conselhos, bem mais puras,

Revelações de amor, bem menos duras,

da experiência que já tenho usufruído.

Pois sempre falo da responsabilidade

pelo próprio futuro e as consequências

das más escolhas e piores decisões.

E aconselho a assumir autoridade

e a conduzir o leme, em mil paciências,

contra a fúria cruel dos furacões.

MAR DE VIDRO VERDE V

E é isso que procuro transmitir,

porque tristezas todos têm bastante,

porque enganos se comete a todo instante,

ninguém precisa das minhas aduzir.

Mas as revoltas conseguem refluir,

contra impostos, por exemplo, essa constante

maré de sangramento conflitante,

que a tantos outros também há de atingir.

E assim, querida amiga ou companheiro,

eu te peço perdão neste momento,

se minhas garrafas, sem querer, quebrei

e deixei escapar péssimo cheiro

a interferir com meu próprio pensamento

e algumas de minhas dores te contei...

MAR DE VIDRO VERDE VI

Porque, de fato, sei que compartilhas

de minhas tristezas e tolos sentimentos,

que nos maculam tantos pensamentos

e que a égua da noite igual encilhas.

Mas te suplico que quebres em estilhas

quaisquer versos que assombrem teus momentos

e só conserves os meus encantamentos,

os instantes de amor a que perfilhas.

Esses conselhos de firme bom-humor,

esse sabor de apenas nostalgia,

esses meus laivos de romanticismo...

E que partilhes de todo o meu vigor,

ajaezado das prendas da poesia

e envolvido na armadura do otimismo...

INFÂNCIA PORTÁTIL I (2006)

Foi de repente. A casa fez-se imensa

e eu caminhava quase rente ao chão.

Paredes muito altas, qual mansão,

em que vivesse fantasia intensa...

Eu andava curvado, a face tensa,

sem expressar nos lábios emoção.

Apenas meu olhar tinha expressão:

recoberta de pelos, mata densa

era minha carne toda e vi uma pata;

olhava para cima em minha surpresa

e via um vulto longo a me fitar...

Por um momento, eu encarnei na gata

e ela estava em mim, estranha empresa,

que pudéssemos por instante nos trocar!

INFÂNCIA PORTÁTIL II - 18 SET 11

E se estivesse a gata em meu lugar,

que estranha a impressão que sentiria?

Sobre meu ombro talvez que viajaria,

mais que em meu colo de seu acostumar.

Ou quem sabe, que em prateleira estaria,

ponto mais alto a que jamais fora alcançar,

(dentro da casa ao menos) ou pensar

que em novo telhado ascenderia...

Pelos meus olhos menos luz veria,

menos detalhes também a perceber:

como era fraco o cheiro desse olfato!

E agilidade muito menor teria,

neste meu corpo já cansado de mover

e revestido de roupas por recato!...

INFÂNCIA PORTÁTIL III

E eu, no corpo dela, a juventude

sentiria, de repente, retornar.

Bem poucos anos têm esse meu par

embora o cálculo que fazem até ajude:

Cada ano de um gato o tempo ilude

como sete de meus anos a passar.

Eu estaria ainda no limiar

de minha adolescência um tanto rude...

Desajeitado em meu trato social,

por ter sido educado em demasia

a um ponto de não ter senão temor

quando fora desse círculo natural

dos parentes e amigos em que cria,

havendo apenas inimigos no exterior.

INFÂNCIA PORTÁTIL IV

Melhor fora ter a gata só um ano,

o que seria o mesmo que meus sete!...

Uma criança que em todo lugar mete

o seu focinho e o bigode soberano...

Com o rabo peludo, um espanador,

que me serve de leme a meu pular

de um telhado a outro, em adejar,

sem sentir da escuridão qualquer temor.

Bem melhor que o menino que então fui

a quem tudo ou quase tudo proibiam,

que só podia ir aonde iam

e cujo coração ainda me influi

em situações um pouco inesperadas,

no despertar de lembranças angustiadas...

INFÂNCIA PORTÁTIL V

Pobre da gata dentro da minha pele!

completamente nua sem seus pelos,

assustada inteiramente em seus desvelos,

suas faces lisas a que o vento gele!...

Pobre da gata que o destino atrele

dentro de minha cabeça, os vagos selos

de seu cérebro incapazes de movê-los

se a ânsia de acionar membros a impele!

Pois nem sequer encontraria um rabo!

Bigode eu tenho, mas sem utilidade,

não mais do que apêndices do rosto...

Salvo um adorno de que ainda me gabo,

sem contribuírem em nada, é bem verdade,

já bem grisalhos para o meu desgosto!...

INFÂNCIA PORTÁTIL VI

Por sorte a sensação foi de um instante

e nem sei se a gatinha a partilhou...

Se por momentos sua mente deslocou

sob a influência da minha mais vibrante.

Falando seriamente, a delirante

sensação que tal soneto registrou

pertence a meu passado e desbotou:

não me foi em extremo impressionante.

Muitos rascunhos esquecidos no passado

me causam boa surpresa, com frequência,

que me parece até em sonambulismo

terem sido redigidos, escapado

de um sonho de pudor ou de indecência,

no feroz esplendor do romantismo!...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 05/12/2011
Código do texto: T3372427
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