FELDSPATO / MARÉS DO TEMPO / ALTERNATIVA

FELDSPATO I (2oo9)

Uma cidade é formada mais de almas

que de argamassa e tijolos. Sentimentos

moldados com areia e com cimentos,

formando rua e casas, flor e palmas.

São muitas mais as almas do que as calmas

campas dos mortos sem ressentimentos,

pois cada qual possui próprios momentos,

reproduzidos em mil lampejos dalmas...

Almas de hoje, de ontem, do amanhã,

são rebanhos de almas transportados

ao deus-dará das ruas da cidade...

E com elas, minha alma temporã,

que escorre de meus dias tribulados,

como parte do tecido da saudade.

FELDSPATO (29 OUT 11)

As casas também deixam velhas almas,

empilhadas sobre almas já do antanho.

Alicerçam-se ante as outras, em tamanho

mostruário do passado das desalmas...

Em estacionamentos de mortalmas,

desalmadas essas casas por tacanho

destruir, pela ânsia de mais ganho

ou apartamentos para vivasalmas...

Mas essas que se deixam perdurar

são almas secas de fatais passados,

em seus velórios lentos, compassados,

aquelas cruzes nas portas, a mostrar

que havia ataúdes, com mulheres enlutadas,

enquanto os homens fumavam nas calçadas.

FELDSPATO III

Almas de árvores há muito já cortadas,

que em seu antigo pouso permanecem,

almas de aranhas que o destino tecem,

almas de insetos perdidos nas calçadas,

essas turbas de besouros pisoteadas,

os gafanhotos sem pernas que padecem,

lançados às galinhas... ou que crescem,

em gigantescas nuvens apressadas...

Almas dos postes de luz já retirados

ou trocados por outros de cimento,

almas dos fios há muito desgastados

e as almas dos moirões de antigamente,

em que atavam os cavalos e que o vento

não conseguiu soprar para os passados.

FELDSPATO IV

Almas das flores de todos os jardins,

dos passarinhos que as debicavam,

dos carteiros que missivas entregavam,

almas dos selos trazidos para mim.

Almas do pão, do leite, dos carmins

jatos de sangue que em partos projetavam,

dos sacrifícios mensais que derramavam,

(e das galinhas a morrer sangrando assim).

Almas de esgotos hoje abandonados

e desses novos, gordos e ainda ativos,

almas dos canos de água esclerosados

e desses cheios de água e redivivos,

almas, enfim, dos corvos, dos pecados

e dos poemas nunca mais ouvidos.

MARÉS DO TEMPO I (30 OUT 11)

(There's a tide in the affairs of men -- Shakespeare).

Erguem-se espiras contra o firmamento,

como lançadas agulhas de espinheiros,

impedindo que dos deuses os traseiros

venham esmagar o povo sem alento...

Espiras erguem-se, terraços sobranceiros,

na rocha viva seu alicerçamento,

pilares contra o céu, em impedimento

dos castigos divinos e altaneiros...

Não são as preces bastante proteção,

é preciso soerguer estas colunas,

góticas torres quais lanças em riste...

Em desafio fantasiado em saudação,

cruzes se acendem sobre as pétreas dunas,

em que perpétua a ladainha insiste...

MARÉS DO TEMPO II

E que melhor lugar para essa justa

que uma ilha na costa, solitária,

sujeita a ventos de intensidade vária,

sob maré que ao pescador assusta...

Maré de vida que ao pecador mais custa

enfrentar com sua alma perdulária

que ao batel a vagar ante a contrária

força das ondas, a que fácil se ajusta.

Porque quem sabe das marés do mar

se lança sem temor ao vasto oceano

e a força das marolas o impulsiona,

ou quando quer à praia se ancorar,

espera as vagas que não lhe causem dano,

quando sua força ao seu remar se soma.

MARÉS DO TEMPO III

Mas pela vida as marés são diferentes,

nunca há certeza de seu retornar,

nunca se sabe o que o dia há de mostrar,

se triunfo ou os fracassos mais plangentes.

E nos horóscopos procuram adivinhar

tais resultados seus humildes crentes

ou nas estrelas que brilham refulgentes,

quais esses fados que tenham a enfrentar.

Não traz a Lua as marés de nossa vida,

que às vezes nos conduzem ao sucesso,

se soubermos o momento de as galgar

ou que, ao contrário, nos levam de vencida

caso enfrentemos o seu manto espesso,

e nos soçobram para à praia nos lançar.

MARÉS DO TEMPO IV

Dessas marés, porém, nada sabemos.

Como mulheres, são vagas caprichosas...

Outras, no entanto, são mais perniciosas:

contestar-lhes o poder nunca podemos.

E não importa se a elas nos deixemos

ou se tentamos desviar suas poderosas

ondas constantes, diárias, majestosas,

que nos impelem, por mais perseveremos,

para uma praia só, lá no horizonte,

negra e sombria como a tempestade,

(que desejamos com nuvens confundir),

quando a maré do tempo nos reponte,

até nos revelar que a eternidade

lá ergueu recifes e vem-nos destruir.

ALTERNATIVA I (2005?)

Que coisa antiga é o humano sentimento!

Repetido e infinito em gerações:

Mulher que encontra um homem e atrações

Rebrotam sem cessar nesse momento...

Um dia te encontrei, foi um portento

Que me entrou pelos olhos, emoções

Contraditórias nessas gradações

Que não se pode ter, sonhos ao vento!...

E como foi estranha a relação

Que nos uniu os dois, pois não querias

E então querias mais, porque sabias...

E agora se completa esta paixão,

Feliz, enfim, nessa alegria louca

De escutar o meu nome da tua boca!...

ALTERNATIVA II (01 NOV 11)

Isso que escuto pode ser mavioso,

conforme o seu tinir, dentes de açúcar,

conforme o farejar, flor de nenúfar,

quando me acerco de teu rosto perigoso...

Olhar de longe é menos delicioso,

indefinido esse piscar de aljôfar,

inatingíveis esses frutos em almíbar,

só entrevistos sob um vidro gorduroso...

Porém, quando se olha ao som do beijo,

parte da face permanece oculta,

só contemplamos a testa e os cabelos...

Olhos nos olhos, miopia há nesse ensejo,

cada narina a outra narina indulta,

queixos perdidos no roçar desses desvelos.

ALTERNATIVA III

O que eu escuto pode ser solerte,

quando tua boca me saliva falsidade,

há tantos beijos a ocultar saudade,

enquanto o lábio contra o lábio aperte...

Puro disfarce, que a mentira não desperte,

enquanto fica a língua em flacidade,

contra outra língua, em gotas de umidade,

sem murmurar a palavra que me alerte...

Em vez de nome, escuto o som dos dentes,

como teclas de piano de marfim,

entrechocados nessa estranha melodia.

Beijos soldados contra meigas frentes,

nas armadilhas abertas contra mim,

que percebi, porém fiz que não via!...

ALTERNATIVA IV

E então escuto o som desse carinho

que se apega a meu ouvido em peditório,

juras eternas de amor tão transitório,

frases dolentes de um calor mesquinho...

Ou eu escuto qual farfalha o azevinho

e o som do beijo imita o de um cibório,

eucaristia real, pleno velório

de outros amores deixados no caminho...

Ai, esses beijos que me deste, de que foram?

Puras quimeras mescladas de ilusão,

verdes guirlandas de vero sentimento?

Ou fogos de artifício que só estouram

nesses frenéticos instantes de paixão

e logo esvoaçam aos caprichos do momento?

William Lagos
Enviado por William Lagos em 11/12/2011
Código do texto: T3383970
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