OLHOS DE MALHA / COLEÓPTEROS CARNÍVOROS / TENDÊNCIAS
OLHOS DE MALHA I (24 NOV 11)
Eu passo pelas ruas e me passam
Centenas de mulheres, sem me olhar,
Salvo dos cantos dos olhos a espiar:
Se me olharem de frente, se desgraçam
E nessas máscaras com que se disfarçam
Ficam meus próprios olhares a avaliar:
Será que valho a pena contemplar,
Por cidadãs que por eles perpassam?
Tudo depende, quiçá, da insegurança;
Por outros mil foram observadas,
Apenas em concreta avaliação
E assim demonstram indiferença mansa,
Enquanto exibem as boquinhas apertadas,
Para criar novas rugas de expressão...
OLHOS DE MALHA II
Elas se movem pelas praças e nas ruas,
Quase empregando a mesma indumentária
Que usaram por razão utilitária
Nessas praias em que andam seminuas...
Não que eu seja contrário às meias-luas,
Com que mostram, de forma atrabiliária,
Seios e coxas em vitrina multifária,
Perante os olhos meus e as vistas tuas...
Sei bem que a autocrítica deveria
Impedir que uma feia assim construa
O seu vestuário de bruxa e não de fada...
Mas não creio no pudor que pretendia,
Nem acredito que alguém ande quase nua
Sem desejar realmente ser olhada...
OLHOS DE MALHA III
Eu sempre admirei o corpo humano
E não somente por seu valor estético.
Identifico-me, num sentido ético,
Com cada membro, por ideal arcano,
De minha raça, sem qualquer engano,
Seja homem ou mulher, são ou aidético,
Bonita ou feia, tudo ao meu poético
Sentir se coaduna, sem mais dano.
Vejo beleza na velha e no esqueleto
Ou mesmo nessas formas carcomidas
Que mostra, às vezes, a televisão
E é natural que tal prazer seja completo
Nessas mulheres jovens e exibidas
Que aos olhares se expõem, sem proteção.
OLHOS DE MALHA IV
E quando as vejo, a exibir sem falha
A sua breve adequação à humana forma,
Meu coração até um pouco se transtorna,
Ao recordar quão breve o dom se esgalha:
Esse frescor tornado em seca palha...
E sou tomado de melancolia morna
Ao ver que se repete a antiga norma
Em que seus olhos espargem a velha malha
Para prender a si um companheiro
Que lhe permita a sua função cumprir,
A si mesmas enganando, na verdade;
Seu tempo fértil passa tão ligeiro,
Logo precisam de se reproduzir,
Pensando que se expõem só por vaidade...
COLEÓPTEROS CARNÍVOROS I (25 NOV 11)
para mim, a poesia é coisa viva
que me devora a carne inteiramente,
que come as emoções, indiferente,
nessa ânsia de manter-se sempre ativa.
para mim, a poesia é morte altiva
dos meus órgãos internos, lentamente,
em minha sexualidade onipresente,
que a epiderme em mil buracos criva.
para mim, a poesia é parasita,
a solitária que percorre o intestino
e do alimento toma a parte do leão,
para estender-se em amarela fita,
a retalhar, aos poucos, meu destino,
enquanto me recorta o coração.
COLEÓPTEROS CARNÍVOROS II
para mim, a poesia é longa fome
de água e de alimento, luz e ar,
que em meu peito se ressente de morar
e quer sair ao mundo e que consome,
pouco a pouco, minha vida meu renome,
meus músculos, meus ossos, meu andar,
que me exige, em constante demandar,
que mais escreva e a redigir retome,
para os proglótides no mundo então lançar,
de outras longas parasitas solitárias,
que infectarão teus olhos, teus ouvidos
e nesse seu incessante revoar,
despertarão as tristezas mais hilárias
nos corações por ela seduzidos...
COLEÓPTEROS CARNÍVOROS III
para mim, a poesia é longa sede
que de meu sangue sempre se alimenta
e que de mim tão só não se contenta,
mas à galáxia quer lançar sua rede;
quanto mais almas desse modo acede,
com suas lianas de ternura benta,
tanto mais se expandir procura, atenta,
e tanto mais espaço ao mundo pede.
por isso muitos contra ela se revoltam:
querem correr da vida essa harmonia,
que a realidade é menos exigente
e cães ferozes contra ela soltam,
cães da ciência e da tecnologia,
para torná-la mais frágil e impotente.
COLEÓPTEROS CARNÍVOROS IV
mas quem se deixa por ela dominar
acaba sendo totalmente escravizado,
embora o seu grilhão seja encantado
e sua golilha sacro condão sem par...
já muita vez tentei dela escapar,
mas sua magia me tem aprimorado
e o coração inteiro devorado
já não consegue sem ela palpitar...
e como é belo perceber, quando escorrega
e por baixo de minhas unhas se transforma
em colorida joaninha, qual tesouro:
ergue a quitina e sua beleza entrega,
para mostrar o élitro que adorna
o poema solto em forma de besouro!...
TENDÊNCIAS I (19 FEV 12)
Ora, por mim, se raios não caírem,
pode chover o Carnaval inteiro!
Pretendo mesmo trabalhar, faceiro,
enquanto as energias resistirem...
Ora, por mim, se ventos não surgirem,
que possam me arrancar do travesseiro,
durante a madrugada, a fim de, bem ligeiro,
os postigos fechar sem me invadirem...
Pouco me importa que chova pelas ruas,
faz falta a chuva e no egoísmo de meu teto
me satisfaço, enquanto pinto e espalho
centenas de palavras, doces, cruas,
palavras de amargura ou meigo afeito,
que resultado são de meu trabalho.
TENDÊNCIAS II
De certo modo, sou escravo delas,
palavras mil, sejam minhas ou alheias;
sei que as minhas em tua mente te incendeias
quando lês tantos poemas tagarelas...
Quando embarcas em minha nave de procelas,
quando sob seu jugo o peito arreias,
com as emoções mais belas ou mais feias
e as costas cedes às presilhas destas selas;
porém tua servidão é temporária,
somente enquanto dura o encantamento,
que mais cedo ou mais tarde, desvanece,
enquanto eu, nesta luta atrabiliária,
me recurvo ante a pressão do julgamento
e cada frase converto em nova prece.
TENDÊNCIAS III
Ou antes, é a mim mesmo que converto:
de tanto te escrever, sou ladainha,
sou um rosário sem salve-rainha,
faço-me ângelus a cada hora desperto,
rezando o terço de poemas em concerto,
faço coro a mim mesmo e só me espinha
essa reza solitária, sob a vinha
de Dioniso, em zombeteiro acerto;
e assim declamo todas as vozes do jogral,
sem companheiros para dialogar
e meus versos se tornam saltimbancos,
em cambalhotas entre o bem e o mal,
saindo de meus dedos, onda e mar,
numa erosão de todos os barrancos...
TENDÊNCIAS IV
E desse modo, tenho meu próprio carnaval,
na forma desses versos que se empurram,
em ânsias de sair. Que tanto urram,
que sou forçado a dar-lhes pleno aval;
e não vejo diferença em vendaval
ou nessas chuvas que os vidros meus esmurram:
são somente os relâmpagos que emburram
e suspendem meu estranho festival.
São mal vestidos estes meus foliões,
são fantasmas de luz sem fantasia,
são dígitos de vento em brotações,
da terra de meus sonhos os aldeões,
por emigrar ansiando a maioria
para as colônias de outros corações...