GABAPENTINA & MAIS
GABAPENTINA I [anestésico e veneno]
Sinto desejo de ti na escuridão
da rua deserta, que não tem abrigo;
em meu ventre, rebrotou ideal antigo,
esse sonho perdido e sem perdão.
Veio o desejo, qual vara de condão
no sortilégio que imaginar consigo,
mas não realizar jamais contigo:
esse desejo que rasga o coração.
E vivo apenas a percorrer calçadas,
pensando em ti e vendo de relance
uma colheita de trigo e outra de fel,
nessas quimeras de luz amarguradas,
num devaneio de igual alcance
ao dos pinguins dançarem em Argel.
GABAPENTINA II
Em centelha de luz, teus olhos vejo,
o bemquerer perdido, lá no fundo:
uma armadilha nesse ardil profundo,
uma promessa anelada de teu beijo.
Em som de vagalumes, te desejo,
na noite escura, em passos iracundo,
em solitário nó, véu rubicundo,
toque de vento, escandaloso pejo.
Eu me vejo refletido na vitrina
e não gosto de mim, que não gostaras:
sou como musgo no chão da Groenlândia.
E minha própria desdita me fascina
e contemplo, em sonho azul, das almenaras,
os elefantes que passeiam pela Islândia.
CRISÁLIDAS I (2008)
o INVERNO, para mim, é puro ouro,
na FÍMBRIA do global esquecimento:
vou GUARDAR caixas num compartimento,
cheias de FRIO, sem me causar desdouro.
por CERTO, eu trabalho feito mouro,
para REUNIR essa grade de um momento,
antes que se DERRETA, em vazar lento,
em ODRES finos do mais puro couro.
pois ASSIM como guarda mais calor,
dentro de SI, enquanto o animal vive,
o COURO reterá também o frio,
que VENDEREI como ventilador,
em LEMBRANÇA de um inverno que já tive,
agora MORTO pela aridez do estio!
CRISÁLIDAS II
"o OLHAR de quem sabe amar
se UMEDECE quando vem a dor..."
mas como é FÁCIL esse tal calor,
nessa EMOÇÃO tão simples de expressar!...
não que eu a QUEIRA realmente desprezar,
mas é COISA bem mais funda meu amor.
não que REAJA somente ao indolor,
mas NÃO É FÁCIL me fazer chorar.
não CHORO pela morte ou por tristeza:
a dor ALHEIA só me impele à ação:
não se faz NADA perante a sepultura.
mais me COMOVE é ver quando a cultura
é TRANSMITIDA à nova geração,
perante a COISA RARA que é a nobreza.
CRISÁLIDAS III
sou PORTADOR de distúrbio psicológico:
isto é, SEM DÚVIDA, a Síndrome da Poesia.
seus SINTOMAS são vários: me alivia
de PARTICIPAÇÃO no mundo sociológico;
escrevo VERSOS de cunho neurológico,
ao INVÉS de pôr-me de amores na porfia.
quando a ESPERANÇA, em timidez, me espia,
me REFUGIO no universo patológico
dos SONHOS e das velas multicores:
versões PSICODÉLICAS de amores,
reduzidos a ZUMBIS de negra tinta,
espectros RETIDOS nessa finta,
quando, DE FATO, teus reais odores
eu PREFERIA, embora em versos minta.
ÓCULOS DE FARINHA I
Caminho diariamente pelas cinzas
que trilharam meus pais e em que se misturaram.
Não vejo rimas para a cor... Quem sabe,
rimarei cinzas apenas com o gris.
Também um dia, nessas brancacinzas,
eu mesmo mesclarei. Verei que andaram
(quem após mim a vida agora cabe)
e subirei feito pó a seu nariz.
Talvez, como os fantasmas do passado,
(que herdeiro me elegeram sem consulta)
a algum escolha para soprar versos,
que marchará, o andar descompassado,
amarfanhado do sonho que o indulta
do dever de povoar de cinza os berços.
ÓCULOS DE FARINHA II
Eu sei que morro e, às vezes, até quero.
É bem provável que até acolheria
a ceifadora que hoje a mim viria,
se indolor for o trânsito que espero.
Difícil é a vida, dentro da qual me gero,
no mesmo ramerrão, dia após dia;
nem lentas mortes eu desejaria,
mas extinguir-me em pleno reverbero.
Queria ser um Doppler: ressonância
que me transformaria em eco e onda,
apenas um zunido em que me esgoto,
translúcida minha nuvem de impedância,
no quântico ondular da mesma ronda,
em que ao magnetismo me devoto.
ÓCULOS DE FARINHA III
Eu sempre busco, ao menos um pouquinho,
manter-me original. Bem sei que tudo
que havia por ser feito ou por ser dito
já o foi, na longa estrada que passamos.
Sou forçado a seguir igual caminho,
nessa trilha de ossos. E, contudo,
sempre há uma coda ou um refrão bonito,
nessa flauta de tíbia que assopramos.
Já antes afirmei: para ser original,
não é o que se diz, porém o como:
são as hemácias que colorem o poema;
não basta uma guirlanda senoidal
de sístoles e neurônios, mas eu somo
meus leucócitos do sangue ao velho tema.
ALMOFARIZ I
vou-me entranhar nas paredes, como insetos,
entrar por uma fenda ou rachadura.
talvez exista sociedade pura,
ungida de argamassa, sob os tetos...
talvez existam templos mais diletos
entre as gretas dos tijolos, sem loucura,
sem automóveis, sem maldade dura,
sem leitura sobre crimes ou panfletos...
espiarei através da fechadura,
meu espírito livre da prisão
dessas paredes que esquece a atmosfera.
sem a graça clerical dessa impostura
que perverte e contamina o coração
pela mentira dessa longa espera.
ALMOFARIZ II
entre as calçadas e paredes, eu me estendo
e a cada dia vejo fenda nova,
por onde a alma penetra e assim renova
conhecimento antigo e então compreendo
e em cada greta, eu percebo que estou sendo
espelho e cópia de quem já está na cova,
as imagens permanecem, mesmo mova
o corpo à sepultura. então, entendo
felicidade e dor, passos das vidas
desempenhadas por entre estas paredes,
imagens tênues de quem foi visita,
imagens firmes de tantas despedidas,
imagens presas em eternas redes,
onde uma réstia de alma ainda se agita.
ALMOFARIZ III
a imensa multidão assim me aguarda,
não apenas a egrégora local,
o gnômon da raça em seu fanal,
na mesma estrada que o destino albarda.
olhos sem luz, a lã que não se carda,
animais mortos, em fúria canibal,
almas partidas, em alas de hospital,
velhos soldados, esquecida a farda.
os sacerdotes, impuros ou sinceros,
famintos operários, fazendeiros,
medíocres vidas ou ricas de opulência,
todos me esperam, esqueletos meros,
engavetados em horizontais sendeiros,
todos iguais na partilha da impotência.
ALMOFARIZ IV
às vezes, tenho pena de pisar
por onde as sombras, tanta vez, passaram:
nas tijoletas seu calor deixaram,
enquanto o sol impediam de pousar.
essas sombras não apenas se evolaram,
correram pelas gretas, a buscar
refúgio permanente no sonhar,
sob os ladrilhos então se refugiaram.
e, como amos antigos, pisoteiam
as sombras secas de velhos proprietários
que assim fazem gemer... porém recebem,
também elas, novos passos que as tonteiam
e geram, por sua vez, espectros vários,
que sob os mansos pisos se concebem.
URDEFESAS I (Defesas primitivas) – 14 JAN 12
Quase toda a criança, desde o berço,
se acostuma a pensar que, deste mundo,
é o centro e que possui profundo
controle sobre um servo onipotente,
que à sua disposição se acha terso:
basta chorar, pois mesmo quando oriundo
de longe, ele aparece, sem ser iracundo,
mas atende a seus desejos, bem contente.
Mas logo o mundo diverso se revela,
o servo onipotente é mãe ou pai,
talvez irmão ou tia – e é incapaz
de conceder quanto a criança anela;
por isso esta revolta que nos vai
insurgir contra a ilusão que se desfaz.
URDEFESAS II
Toda criança é plenamente egoísta
e tem de ser forçada a conceber
que para na família um lugar ter
deva aprender como tornar-se altruísta.
Muitas vezes, é bem árduo perceber
a dor dos outros; difícil é a conquista
da simpatia quando o mal se avista
e na expressão do rosto se faz ler.
Pois não se sente nunca a alheia dor,
por mais que nos comova a simpatia:
padece cada um a sua doença...
E nos momentos de maior amor,
sempre rebrota uma certa antipatia,
mesclada por suspeita e por descrença.
URDEFESAS III
Às vezes, é a sondagem dos limites
que conduz, nessa busca da esquivança,
o mau comportamento da criança,
que atende dos impulsos aos convites.
Mas és tu que essa atitude lhe permites:
é dos adultos a tarefa da ensinança
e na tua casa jamais terás bonança
quando chega o momento e então te omites.
Porque nenhuma criança te respeita,
se lhe deixares plena liberdade,
sem lhe mostrar o ponto de parar;
bem ao contrário, de traição suspeita,
porque não lhe domaste sua maldade,
como forma de um amor maior provar.
URDEFESAS IV
E quem assim limita-se a deixar
uma criança em plena liberdade,
para fazer quanto lhe der vontade,
nada mais faz do que a prejudicar.
Que está de fato um sociopata a ensinar
ou um tirano contra toda a humanidade,
alimentando a indiferença sem bondade,
pela falta de limites a encontrar.
Porque a maldade pode ser punida
e até contê-la se pode conseguir,
mas nada curva a total indiferença
e o resultado será péssima vida
para a criança que alheia persistir:
fantoche apenas de uma angústia imensa.
URDEFESAS V
Porque é certo que fora do imediato,
paciente círculo de seus familiares,
ninguém aceitará seus peculiares
caprichos egotistas do insensato
coração, que nunca aceita o fato
de que os demais não são seus auxiliares
e que espalha prepotência sem cuidares
e apresenta exigências sem recato.
Se a família não o fez, fá-lo-á a escola,
pela ação e reação de seus colegas
e encontrará mais árdua adaptação;
logo sua turma aprontará a degola
de boa parte de suas pretensões cegas,
para mostrar-lhe seu lugar, sem compaixão.
URDEFESAS VI
Mas permanece o Servo Onipotente,
transmutado em gentil Papai Noel,
em que os desejos encontrarão quartel,
através da simpatia de um parente.
Mas sofrerá depois mal consequente,
ao finalmente reconhecer, com fel,
que essa mansa alegoria de ouropel
é criação social bem transparente.
Quantos confundem Papai Noel com Deus!
Também o mostram como Servo Onipotente:
quando um é falso, outro o será também.
E é por isso que muitos são ateus,
por que rezaram por algum presente,
para esse Deus que não é servo de ninguém.
ESCAVADOR I – 5 JAN 12
Como as florestas sob os restos crescem
De bosques mais antigos, a cidade,
Sobre os restos da mais velha humanidade,
Tende a crescer enquanto os anos descem.
E essas ruínas, que já desfalecem,
São recobertas até a opacidade,
Por entulho, por caliça, por vaidade
E as cinzas do passado já se esquecem.
Quando Schliemann Troia descobriu,
De nove cidades encontrou estratos,
Depois se acharam até vinte e três.
Quantas vezes o inimigo destruiu,
Sem deixar mais que a sombra dos retratos,
Veio outro povo e tudo então refez...
ESCAVADOR II – 15 JAN 12
E foi assim através de todo o Império,
Qual os romanos souberam expandir;
Foi este o império mais longo, até ruir,
Pois os romanos levavam bem a sério
O quanto construíam, desde o cemitério
Até ao circo, onde corridas assistir,
Aos templos para aos deuses erigir,
Do vasto Coliseu ao monastério.
E é provável que até durassem mais
Se a civilização ali durasse menos...
Porém a maior parte das cidades
Continuou a ser povoada, sem jamais
O barco das areias de mil remos
Conseguir extinguir-lhe a humanidade.
ESCAVADOR III
Até parece estranho que as cidades,
Desertadas por suas populações,
Submetidas por aniquilações,
Subsistissem com mais integridades,
Mas a areia dos desertos as vaidades
Cobriram integralmente e os vulcões
Formaram sobre outras seus colchões
De cinzas e de lavas nas idades.
E assim as preservaram, sem querer,
Durante séculos, até que a arqueologia
Desenterrasse dos mortos os salões,
Recuperando assim para o saber
O que não decompôs a biologia
Ou que não demoliram multidões.
ESCAVADOR IV
Pois foi assim que ocorreu nesses lugares
Que permanecem habitados por mil anos
Ou por dois mil ou mais, como os romanos,
Que nos legaram, a despeito dos pesares,
Seus aquedutos, os fóruns e os lagares
E até as estradas, seus deuses soberanos,
Suas leis e seus costumes mais humanos,
Que os praticamos ainda similares.
Mas esses blocos que foram soterrados
De um modo ou de outro nos perduram,
Enquanto os prédios foram demolidos,
Só os alicerces deles preservados,
Que as gerações seu bem-estar procuram,
No descaso das muralhas dos olvidos.
ESCAVADOR V
E foi assim que sucedeu, por muitas eras:
Os povos simplesmente construíram
Os seus prédios sobre outros que ruíram
E os templos seu lugar deram às meras
Casas modestas ao longo das esperas,
Até que novas preocupações surgiram,
Quando as românticas ruínas seduziram,
Na transferência do valor a outras esferas.
Por isso, onde existe mais cultura,
Tem mais valor uma ruína escura
Do que edifícios altivos e arejados,
Mas noutras partes, porém, ainda perdura
Esse desprezo pelos dias passados,
De que a memória chora a desventura.
ESCAVADOR VI
Nos anfiteatros de Espanha foi assim:
Descobertas as vetustas arquibancadas,
As Imas Caveas já quase niveladas,
Mas houve o esforço de revelar, enfim,
Em dezenas de outros sítios, outrossim,
Essas memórias hoje recuperadas
E em melhores condições já preservadas;
Pouco sobrou de Zaragoza ao fim
Das múltiplas nações que aqui habitaram
E os tristes restos que hoje vêm à luz
Nem de longe têm o brilho que alcançaram
As Imas Caveas que algures escavaram,
Mas nos degraus carcomidos ainda reluz
Um coágulo dos dias que passaram.
MALMÖ I – 18 JAN 12
Se fico assim, amanhecendo esperas,
de repente brota tudo, como um jato
e me ejaculo em versos, nesse ingrato
mister em que derramo tantas veras
de minhalma, esses lemes de galeras,
noventa escravos a remar, de fato;
sessenta velas ao vento, em arrebato,
enfrento as ondas como bestas-feras,
senhor de meu timão, mas não dos ventos,
meus galés a remar nas calmarias,
meu velame a recolher nas ventanias,
os caminhos do sangue em gestos lentos,
pingando gota a gota, neste espanto
de quem chora palavras sem ter pranto.
MALMÖ II
E que fazer, afinal? Só tive sonhos,
nunca planos na minha vida sem projetos,
sempre aceitei o presente dos afetos,
por mais estranhos fossem e bisonhos...
Eu mal busquei abrigos. Esses tetos,
sob os quais habitei, estranhos põem-nos
por sobre mim. E então, expõem-nos
às incertezas do mundo. Vi meus fetos
disseminados no esgoto do social,
sonhos de argila que nunca foi ao forno,
ideais com jaça, pesadelo quebradiço...
Nunca tive meus quereres, afinal,
somente realizei um dever morno,
amortalhado em meu prazer mortiço.
MALMÖ III
Vi, certa vez, um prego enferrujado,
meio dobrado contra uma parede;
fui assaltado por estranha sede
de conhecer em parte o seu passado.
À luz mortiça, meu olhar gazeado
só percorria aquela sombra – e vede!
Corriam figuras igual que numa rede
e os peixes se debatiam a cada lado...
Eram sombras em presa ao desespero,
que se agitavam quais sonhos futuros,
e me inspiravam atroz premonição
de que tais sonhos, por mais que fossem puros,
seriam tortos pregos, em que gero
tão só a ferrugem de sua desilusão...
MALMÖ IV
Quem mais assim avalia um pobre prego?
Qual azinhavre que nem mais reluz?
Não era ao menos um dos cravos de Jesus,
nem a comporta que regula o rego,
igual aos versos que hoje ainda te lego,
que embora não perdurem qual a cruz,
erguem-se tortos empós teus olhos nus,
abrem-se ao mundo em seu olhar de cego.
Que em tudo neste mundo há algo de ledo,
mesmo naquilo que é tido sem valor:
de um acidente o tresloucado berro,
até mesmo no esterco, em malodor.
Basta que saibas de que modo vê-lo
e encontrarás beleza em pobre ferro.
MALMÖ V
Contemplo agora esse prédio retorcido,
na novel arquitetura da vaidade,
nessa inconstância de toda a humanidade,
novo padrão de estética cumprido;
quer do carvalho copiar rugosidade
ou foi quiçá como serpente concebido,
talvez no Grito de Munch perquirido,
num desafio ao poder da gravidade.
E seu espaço interior, como é que fica?
Essas peças terão sequer formato,
em geometria romboide compelida?
E qual arcobotante aqui se aplica,
nos contrapesos sem qualquer recato,
mil imprevistos a copiar da vida?
MALMÖ VI
O prego é torto e o prédio é retorcido,
embora feito de galvanizado aço,
com engenhosa concepção no seu regaço,
pelo orgulho local assim nutrido...
Bem certo é que não seja perseguido
esse país por ciclone ou pelo abraço
de um terremoto ou de um vulcão o traço,
mas que vaidade clama o seu bramido!
De art-nouveau possui a influência,
mas em nada lhe repete a elegância,
é torturada Torre de Babel...
Talvez seja punida a incongruência,
mas nela vejo o belo da inconstância,
a que tanto a humanidade dá quartel...