GOLILHA DE BARRO I-XII
GOLILHA DE BARRO I (29/11/2009)
Teu reflexo eu vejo na vidraça,
por entre os fios de chuva em maratona:
ondulantes esses fios, formando zona,
que o contorno do semblante assim retraça.
A chuva escorre e meu respiro embaça
a janela por dentro, em fina lona:
é quase a face de que foste dona,
até que a imagem inteira se desfaça.
Pois logo o bafo interno se evapora
das bordas para o centro e teu contorno
só me resta novamente imaginar.
Entre os caixilhos, teu rosto de outra hora,
contra a noite refletido no olhar morno,
sem que na chuva te veja a me buscar.
GOLILHA DE BARRO II
Tanta vez vi teu reflexo mostrado
por estes vidros, luz de minha janela,
mais luz teu rosto refletido nela
do que a luz de meu vidro atravessado,
durante a tempestade negrejado,
tua face refletida como estela
ou pela noite, quando ainda mais bela
me parecia, com o semblante emoldurado.
Ou quando de manhã, os meus postigos
não tinham sido ainda descerrados,
teus traços nesse espelho estremunhados,
reclamando de teus sonhos inimigos,
abrindo as venezianas, em desenlace,
para que a luz teu reflexo apagasse...
GOLILHA DE BARRO III
Era costume dos escravos ao pescoço,
preso à corrente, soldar anel de ferro.
Em longa fila, a bimbalhar, aterro
para uma construção ou para um fosso
era levado e a golilha até o osso
rustia a carne e lhes cortava o berro;
até comer era difícil. Só no enterro
cortavam-lhes o anel de ferro grosso.
E amor é assim, anel na tua garganta,
trancando lá no fundo o sofrimento,
forçando o som do teu contentamento...
É uma corrente que teu peito imanta,
soldada em torno de teu coração,
anel forjado em tantos elos de ilusão.
GOLILHA DE BARRO IV
Mas enquanto o anel do escravo era de aço,
esse anel teu é tão só anel de barro,
pois nesta fantasia que hoje narro,
a tua golilha foi forjada em um abraço.
Não é de ferro a força desse sarro,
é anel de beijos de sabor escasso;
a força desse anel, a cada passo,
mais se incrementa no rodar do carro.
És tu que tornas esse anel mais forte,
forjando diariamente tua corrente,
queimando o barro como terracota,
pois preferes ter do amor a incerta sorte,
por mais que seja teu parceiro indiferente,
do que beberes solidão gota após gota.
GOLILHA DE BARRO V
Essa argola que te aperta o coração
talvez seja de barro, mas é forte,
não se derrete com as lágrimas da morte,
não se dilui na nostalgia da ilusão.
E cada gota de sangue ou de paixão
mais aguçado lhe provoca o corte,
mais permanente me confirma a sorte,
de amor o barro nos finca mais no chão.
E é essa golilha, firme na corrente,
que nos conserva contra a gravidade,
que enamorados tendem a flutuar...
E ao desfazer-se da quimera impermanente,
tombam no solo, em súbita saudade,
seu coração pesado a estilhaçar...
GOLILHA DE BARRO VI
Meu coração já é um pano de cambraia,
cada orifício foi aberto a fogo
por olhares alheios. Não me rogo
a receber novos golpes de azagaia
de pontiagudo ardor, cabo de faia,
para dar firme golpe nesse jogo.
Eu abro o coração e a vista, logo,
perfura facilmente a nova baia.
Muito melhor esta falsa sedução
que os buracos verdadeiros do passado,
em que muitos, de fato, me assolaram,
falsos amigos, que nunca tive irmão,
e os pares de olhos, mesmo o mais amado,
minha alma casualmente esfacelaram...
GOLILHA DE BARRO VII
Teu olhar gravou-te o nome na minha face,
são duas estrelas sob os meus malares,
são dois faróis afastando os meus azares,
são dois rebites com que a corrente enlace.
Teu olhar não se busca, porém faz-se
presente na tua ausência... Meus esgares
são máscaras de ti, plenilunares,
quando essa pele que beijas se me esgarce.
Cravados fundamente na ossamenta
que me sustenta o crânio, parasitas,
alimentados de mim, sem que te importes,
mais resistentes que uma argola assenta,
para onde queres que eu vá tu me concitas,
nessa senda que me leva a novas mortes.
GOLILHA DE BARRO VIII
E esta argola soldada a meu pescoço,
em que se prende a corrente de teus olhos,
formada pela areia dos escolhos,
em que me arranho na busca deste esboço
de sonho sem perfume e gosto insosso,
que me puxa violenta em seus trambolhos,
num capacete de couro e com antolhos,
é bem mais firme que as cadeias desse fosso
em que jaz meu coração atormentado:
vivo em delírio, sem saber para onde vou,
ou quais caprichos amanhã me mostrarás;
e desse modo, qual escravo chicoteado,
nem me rebelo contra a vida em que eu estou,
nesse temor de que me libertarás...
GOLILHA DE BARRO IX
Quando chove, eu nem saio mais à rua,
pelo terror de que possa desfazer-se
esta golilha de barro e que dispersa
se torne esta corrente. A chuva, como pua,
vai penetrar-me até a garganta nua
e então verei o meu anel a dissolver-se:
que fique na sarjeta essa cadeia imersa,
a me alforriar da escravidão que é tua...
pois se a golilha puro ferro fosse,
no máximo pela chuva enferrujada
se tornaria e não seria partida,
mas eu desejo a servidão que trouxe
a meu pescoço o olhar da face amada,
sem almejar que seja inteira destruída.
GOLILHA DE BARRO X
Por isso, minha golilha com verniz
já recobri, para que dure mais;
não me ponho a gemer, em tristes ais,
pois foi esta a servidão que sempre quis.
Pior seria ter a argola no nariz,
que a tivesse assim forjada no ademais,
mas minha nave é cadeia presa ao cais
em que me ancoro e a qual eu mesmo fiz.
Não espero que a maré me lance ao largo
e me permita acesso ao vasto oceano,
porque sei que na outra margem não estás;
nem me parece a escravidão destino amargo,
quando sei que minha corrente é apenas pano,
mas que rasgá-lo, somente tu serás capaz!...
GOLILHA DE BARRO XI
Fui em mesmo, afinal, que fui na forja
e martelei minha corrente, elo após elo;
eu mesmo fiz o grande anel singelo
e o soldei à corrente junto à gorja!
Eu que nutri lentamente a estranha corja
de sentimentos e noções sem fato;
eu que criei ilusões, ato após ato,
para sozinho puxar meu barco à sirga! (*)
Corrente acima, muito além da praia,
contrário ao vento que minha vela envola,
sem querer ao fracasso dar a palma;
e assim me exponho à zombeteira vaia,
dos que me virem, posto que essa argola,
só se acha presa ao pescoço de minha alma!
(*) Rima toante. Sirga é o reboque de um barco rio acima com cordas puxadas pela margem, por homens ou animais.
GOLILHA DE BARRO XII
Essa corrente eu moldei com amor vago,
restos de afeto ao longo do caminho,
esse anel é de barro envolto em linho,
numa alquimia e proteção de mago.
Meu barco sobe o rio e chega ao lago
em que esse amor se encontra, pequeninho,
não é oceano ou vaga, sequer vinho,
somente a argola fundida de um afago.
E passo o dedo ao redor de meu pescoço,
por onde a pele se acha em carne viva,
por sob escaras que o roçar arranca,
mas só de te rever, então remoço,
nesse fulgor dos olhos de minha diva,
que a dor acalma e a sangradura estanca.