MOLÉCULAS ABERTAS / LUA PARADA
MOLÉCULAS ABERTAS I (2 MAR 12)
As moléculas se formam por valências:
Um radical pede uma e o outro a dá;
A negativa que se encontra lá
Do positivo precisa, em ambivalências.
Nessa dança dos átomos, as cadências,
Girando ao meio-ambiente do acolá
Perseguem outra, por onde quem que vá
A fugitiva em suas incontinências...
Sou cátion com átomos sobrantes;
Procuro ânion com tal necessidade:
É o positivo quem dá, na realidade!...
É a negativa que recebe os seus diamantes,
Nessa camada eletrônica, a aliança
Busca a molécula de ouro da esperança!...
MOLÉCULAS ABERTAS II
Não é estranha essa contravenção?
Que esse que dá seja chamado positivo
E à que recebe, o rótulo negativo
Seja aplicado, por antiga convenção?
Ocorre assim em toda a elétrica moção,
Foi uma escolha no passado decisivo:
Eram iguais as chances e gesto altivo
Chamou de positiva a negação!...
E negativa tornou-se a afirmação,
Porque molécula de amor vive somente
Se a negativa em tal amor consente...
É o positivo que busca a aceitação,
Para que os átomos se prendam como luva,
Cargas elétricas escorrendo feito chuva...
MOLÉCULAS ABERTAS III
Mas um poeta possui átomos de sobra:
Sua valência é tripla e até mais...
Somos carbonos perdidos no ademais
E logo surge outro ânion, que lhe cobra
E a ligação anterior quase soçobra
Nos hidrocarbonetos naturais:
São as cadeias que formam os fanais
E nova vida surge e se recobra...
Que o anel de benzeno é só perfume,
Mas como anel deverá ser penetrado,
Por isso é o da mulher assim buscado...
Esse anel de veneno, que presume
Moléculas abertas para a vida
A ser por átomos mil reconstituída.
MOLÉCULAS ABERTAS IV
Abre então todos teus íons para mim!
Seja suprida a tua falta negativa,
Como ninho de minha carga positiva,
Novel molécula a constituir assim...
Camada externa de teu anel carmim
Satisfeita pelos cátions da saliva:
Que teus ânions sejam fonte rediviva,
Nessa implosão de nós que não tem fim!
Amor feito de atração, amor iônico,
Amor quântico, amor molecular,
Amor a encher vasos comunicantes,
Amor de proteção, amor ozônico,
Amor atômico, na escala singular,
De apenas dois elementos a se amar!...
lua parada I (3 mar 12)
nesta noite de março solitário
a minha barba eu considero e penso
se deixarei cavanhaque mais extenso
ou se vou apará-la e um relicário
fazer com tantos fios do plurifário
adorno de meu rosto, este meu denso
apêndice grisalho, cujo senso
já se perdeu, não mais viseira de corsário
facial peruca, abrigo de migalhas
que costumo, afinal, manter bem rente
pela pura exação de meu pendor
antigo desafio feito mortalhas
nessa brancura tornada já impotente
para enfrentar o mundo com vigor
lua parada II
afinal, muito evitei a luz do sol
depois que os imprudentes perfuraram
a camada de ozônio, esse sacrário
que nos protege da radiação como um farol
atraindo para si, colar de escol
os raios alfa e beta e o atrabiliário
furor dos raios gama contrariaram
tais átomos de ozônio no arrebol
que normalmente o bramir do oxigênio
com si mesmo se contenta, hermafrodita
que respiramos, em ímpeto fatal
mas só então, por força do estrogênio
amor a amor alheio se concita
na busca plena de outro livre radical
lua parada III
e a lua brilha, em imobilidade
a cada vez que pela noite eu saio
e os ponteiros do relógio assim contraio
para que seja a noite eternidade
em serenata de magnanimidade
seresteiro sem musa, alegre baio
em armadilhas alheias eu não caio
resguardando para ti a minha vaidade
e a lua então minha barba nuanceia
com seus laivos gentis de deusa antiga
de seu carro me deseja como auriga
e assim meus pelos todos me prateia
e no desejo de amar-te, frente a frente
eu forjo a noite em tesouro permanente
lua parada IV
que fim levaram as pontas destes fios
hoje são brancos, outrora multicores
lavados na saliva dos amores
lambeste-me as nuances nos teus cios
eu te encontrei envolto nos meus brios
vermelhas as suíças e de outras cores
bigode e cavanhaque espantadores
quase ninguém usava barba e arrepios
até te provoquei com meus carinhos
e me cobriste de licores corporais
que me lançaram essas cores no jamais
que a barba branca terá menos espinhos
mas nem por isso me desfaço dela
restos da espuma do vento e da procela
desânimo III
que rapidez com que a atual tecnologia
se suicida para o obsoleto!...
o novo, logo após não ser secreto,
já se arrisca a tornar-se sem valia...
lembro que o ritmo antes não corria
assim tão célere para o desafeto.
hoje não dura mais do que um inseto:
é efeméride que vive por um dia...
mas eu não me acostumo e até queria
que certas coisas parassem. ainda bem
que outras queria andassem mais depressa...
e é assim que se compensam, à porfia,
em rapidez e lentidão. também,
enquanto a morte aguardo, sem ter pressa.
desânimo IV
agora, eu leio pouco. antigamente,
eu lia o tempo todo que sobrava;
traduzo hoje na tela e o que restava
de meu tempo se esvai rapidamente.
e quando tenho a ideia inteligente
de um livro trazer na minha aljava,
para ler nas minhas esperas, coisa brava,
me ponho a rolar versos, inclemente.
e o tempo vai-se indo, livros passam
pela minha tela, por mim processados
em novos livros pelo meu talento
e nesses intervalos que se espaçam
só têm lugar sonetos apressados,
em folhas soltas que carrega o vento.
desânimo V
nem sei por que te escrevo assim; estou cansado
de tudo que minha vida representa:
até meu corpo assim se desalenta,
em retroalimentação de igual estado.
e nem era para ser... o mau olhado
que me feriu, há meses, se espaventa.
desde janeiro, sem cessar, se assenta
sobre o tampo de minha mesa, um apanhado
de trabalhos variados... pagamento
custa sempre a chegar, mas tem chegado
e eu mesmo paguei tudo o que devia.
e ao mesmo tempo, percebo, em sofrimento,
que ao receber trabalho, me é negado
todo o carinho que há pouco recebia...
desânimo VI
em breve, ela virá, sem perceber
e nem sequer desejar o meu querer.
apenas chegará, com seu perfume,
em lúbrica inocência e desfazer.
ela virá, sorrindo, indiferente,
não por desdém, mas como a toda a gente
premia... tal que brilha o vagalume,
com seu esgar gentil, placidamente.
ela passa por minha vida e nem sequer
enxerga que a percebo qual mulher,
porque homem para ela nunca fui.
sou apenas objeto de passagem,
a quem se trata bem, sem vassalagem
à mera ideia de amor que jamais flui...
desânimo VII
enquanto me apercebo da pressão
que me avassala, tento em vão fugir
e só consigo em palavra escapulir,
até que as pinças se fechem, em malsão
apertar inconcludente ao coração,
em sístole e diástole, longo refluir,
enquanto a força das garras permitir
enquanto reste ar no meu pulmão.
eu me afogo na vida e me sufoco
e é pela própria sufocação que vivo:
se a não tivera, nem sequer motivo
me restaria para respirar, a troco
de um doce fazer nada, sem suporte
dessa pressão que me costura a sorte.
desânimo VIII
quando sentires o mundo desultório
e a vida a teu redor puro desânimo,
sem resultado que te erga o ânimo,
toda vitória um simples foguetório,
quando sentires o peso de tua história
a perfurar teus ombros como espinhos,
quando sofreres por falta de carinhos,
nesse acicate de lava feita escória,
quando tudo a teu redor parecer morto,
sem um único luzeiro na neblina,
o mar em calmaria e o vento aziago,
toma dos remos e ruma para o porto,
lembra que és dona do leme de tua sina
e podes transformar carga em afago.
desânimo IX
mais outra vez, fico perdendo tempo,
enquanto espero que façam uma prova,
que de dois em dois meses se renova
essa angústia de tédio e contratempo.
não pretendo repetir os neologismos
que escrevi outro dia, num desplante,
em desafio total e triunfante
a este ambiente de malícias e sofismos.
que minha revolta só se mostra em versos,
enquanto encaro o mundo com enfado,
sem pretender que pertenço ou sou excluído.
apenas vejo os díspares reversos
do azinhavre dos rostos, no mofado
tempo de vida que em aulas foi perdido.
desânimo X
com vinte e sete centímetros de versos
já em minha pilha, para um novo dia
eu me preparo, de esperança exangue.
sei que esse dom, como já outros conversos
trabalho me trará, não alegria,
na cadência impertérrita do sangue.
por isso, ora me atrevo a inverter
as regras do soneto, sem alarde,
já que percebo que em meu peito arde
uma chama que já pensa em converter
a longa pilha em cinzas e acendalha.
talvez queimando tudo, me retorne
a esperança de que amor se amorne,
no frio coração que a mente espalha.
LUZ SOLAR I
Como sangue, em minha janela o sol
se derrama, coagulado em uma poça.
Ao avistá-lo, meu cérebro remoça
e das tristezas olvida o longo rol.
Que fazer, se o peitoril, como um farol,
congelou a claridade numa fossa?
O Universo inteiro ali se esboça
e minha mente se afoga, em luz de escol.
Com os dedos, tateio pela borda
e ergo essa massa lisa e luminosa:
um sol redondo que minhas mãos não queima.
Enrolo a luz e a amarro com a corda
destes meus pensamentos, pegajosa
e a guardo ao coração em eterna teima.
LUZ SOLAR II
Eu bebo o sol, assim liso e acidulado,
qual a massa de pão, sem ter fermento.
Ergo os cabelos, em igual portento
e guardo a luz no cérebro encantado.
Assim fica para sempre embriagado
quem o sol traz em si, sem cabimento.
Apolo deglutiu, num só momento,
foi de uma vez feito aedo consagrado.
Toco de novo o peitoril gelado:
o Sol brilha no alto, indiferente,
mas do círculo perdeu-se toda a poeira.
Não foi o Sol, mas um sol assim tomado;
é a dádiva dos deuses, simplesmente:
bebi seus dons e marcho em sua esteira.
LUZ SOLAR III
E, novamente, o couro cabeludo
arranquei totalmente: expus o crânio
e me envolvi no sol do peitoril,
que recobri de novo com cabelos.
Quem tem os dedos para tal veludo
arrancar da janela, em gesto insano,
durante um dia de sombra sem anil,
refém se torna de seus próprios desvelos.
Mas não busco resgate. Sou meu guarda,
um áulico fiel da majestade
de tantos sentimentos desconformes.
Custódio revestido dessa farda
que só os deuses, em sua eternidade,
às vezes pingam em ti, enquanto dormes.
LUZ SOLAR IV
Talvez por isso sinta a tosse estranha
que me acomete, já há duas semanas;
fiz raios-X e os testes das escamas(*)
e nada foi achado. A tosse ganha,
diariamente, aspecto de artimanha.
És tu, ardor de Hélios, que te irmanas
nessa esternutação? Luzes arcanas
brotam em mim, em inesperada sanha.
em que os neurônios, feito cata-vento,
são queimados pelo ardor que em mim esboces,
explodindo em castiço movimento.
Porém meus dedos... são bastões de vento,
redemoinhos de cor, palavras doces,
nessa mistura de lúdico momento...
(*) Reação de Mantoux para identificação de tuberculose.