FREUD E ELEKTRA & MAIS
FREUD E ELEKTRA I – 14 MAR 12
De Agamêmnon Elektra era filha,
irmã também de Ifigênia e ainda de Orestes,
sacrificada a segunda contra as pestes,
antes de ir a Tróia, em escura ilha.
Sua mãe guardou-lhe o sangue numa bilha,
Clitemnestra, movida por agrestes
impulsos, em sua busca de incontestes
desejos de vingança, que perfilha...
Aliou-se a Egisto, sobrinho do marido,
porém legítimo herdeiro de seu trono;
deu-lhe a coroa e o recebeu no leito;
quando Agamêmnon, dez anos de partido,
retornou a Micenas, no abandono
de um banho quente, punhal cravou-lhe ao peito.
FREUD E ELEKTRA II
E derramou-lhe o sangue na cabeça,
guardado de Ifigênia por dez anos;
da execução dos atos desumanos
explicação não é preciso que se peça
a deuses e demônios, pois não cessa
a inventividade dos humanos
com referência aos crimes mais arcanos:
são o ciúme e a ambição a causa dessa
conspiração de vampiro e salamandra.
Freud as tendências humanas explicava,
não por destino, mas ódio e angústia brava;
na ocasião, ela matou também Cassandra,
filha de Príamo e de Agamêmnon a escrava
e a seguir, a seu amante se entregava.
FREUD E ELEKTRA III
Elektra, porém, seu pai amava,
na mais perfeita devoção filial
e sobre o túmulo do corpo paternal,
de dia e noite, sempre ali chorava.
Clitemnestra, de temor, até a obrigava
a seu casar com um camponês de seu aval,
julgando assim se olvidaria, no final,
de tanto pranto que na tumba derramava.
Mas ela apenas por Orestes aguardava
e quando o irmão finalmente retornou,
fê-lo matar Clitemnestra e seu amante;
o matricídio a Orestes espantava
e quase enlouqueceu, quando afirmou
ser torturado pelas Fúrias, delirante...
FREUD E ELEKTRA IV
Mas no Areópago, a voz da própria Atena
o absolveu de tão hediondo crime:
é permissível então, que se assassine
a própria mãe, quando à morte o pai condena...
Casou-se Elektra com Pílades, sem pena
do camponês, por mais que este a estime;
Médon e Estrófio são os filhos em que arrime
seu novo esposo; e o primeiro se envenena...
Freud de Sófocles o resultado triunfante
em sua doutrina um dia empregar vai;
mas a mensagem de amor assim se impetra:
pois não anseio que te tornes minha amante,
porém que penses em mim como teu pai
e desenvolvas um complexo de Elektra...
WELFEN (GUELFOS) I – 15 MAR 12
Antigamente, eu tinha mil soldados,
durante a infância e até a adolescência;
travei com eles batalhas de inocência:
era o guerrear de meus empapelados...
Alguns eram de plástico formados,
outros em chumbo fundidos, com ciência,
outros ainda recortados, com paciência,
de fascículos que a Abril tinha publicados.
Havia de pano também, cerca de oitenta,
de um teatro de fantoches resgatados,
usavam lanças de um jogo de varetas...
E em todos eles, o realismo atenta:
traziam nos corpos buracos preparados
em que cravava tais lanças em minhas tretas.
WELFEN (GUELFOS) II
Mas é claro que não os estragava,
porque as varetas não espetava fundo;
era o massacre seu tão só jocundo:
após brincar, as varetas retirava...
E em sua caixa, a todos eu guardava.
Às vezes, os enforcava, furibundo,
meu patíbulo as cadeiras... Nesse mundo
cada um ao lado de outro pendurava...
Mas os guardei além da adolescência
e os emprestava à minha irmã mais moça,
que acabou por destruí-los, um a um...
Enquanto eu contemplava, em impotência:
não podia mais brincar, alvo de troça...
E hoje em dia já não resta mais nenhum.
WELFEN (GUELFOS) III
Os soldados de chumbo fui guardando
em caixas de charutos Suerdieck;
era meu tio que os fumava, de moleque,
com folhas de papel os separando.
Alguns vindos da França, no comando
de um tio-avô francês; e que eu não peque,
pois meu avô comprou formas em leque
e os fabricava, para vender em bando.
Minhas tias os pintavam, com cuidado,
sob as ordens de minha avó autoritária:
muitas décadas depois, os repintei...
Com tinta esmalte, à mesa bem sentado;
e um dia, sem receber ordem contrária,
para meu filho a tropa inteira eu dei...
WELFEN (GUELFOS) IV
Alguns tinham pertencido a esse meu tio;
outros ganhei de presente de um avô;
outros ainda uma tia me comprou;
comprei eu mesmo os marinheiros, sobre o lio,
montados em canhões, estranho cio,
mais alemães, com suas metralhadoras,
além de índios, com suas peles mouras,
com meu próprio dinheiro, grande brio!...
Numa ferragem que outros tios mantinham,
fundada um dia por um bisavô suíço,
que meu avô vendeu para os irmãos...
Era em Pelotas; que em Bagé só vinham
outros soldados, de muito menos viço,
que comprei na Casa Lyra com minhas mãos.
WELFEN (GUELFOS) V
Após a guerra, os de plástico chegaram,
vendidos caro para os brasileiros,
pelos créditos de produtos verdadeiros
que aos ianques os nossos exportaram,
enquanto os esforços de guerra continuaram.
Eram maiores, tridimensionais, inteiros,
não achatados, como eram os primeiros
e aos poucos em pelotões se acomodaram.
Mais grande número de verdes viaturas,
com uma estrela única dos lados:
desconfio serem russas as matrizes...
Dei a outro filho estas novas criaturas,
tanto os veículos como todos os soldados,
feitos de plástico em múltiplos matizes.
WELFEN (GUELFOS) VI
Os soldados desenhados pela Abril,
eu recortara, cuidadosamente,
e reforçara com papelão, contente
ao vê-los desfilar, porte viril...
Uma tira vertical, bem varonil,
se apoiava numa base mais saliente:
outra tira de cartão, cortada rente,
que eu dobrava para trás, em juvenil
capricho de mil horas de trabalho.
Eles ficavam de pé, perfeitamente;
durante as lutas, se a imagem via,
só estavam feridos pelo talho;
porém se as tiras ficavam para a frente
que o soldadinho falecera eu decidia!...
ESTERNUTAÇÃO
Espirrar contra o vento traz má sorte:
borrifas a ti mesmo e então o nojo
te faz limpar o rosto do despojo
dos perdigotos, em desgostante corte.
Reclamar contra a vida ou contra a morte
produz igual efeito; mais trabalho
terás para limpar o tal chocalho
de queixas de pequeno ou grande porte.
Ao espirrar, busca o favor do vento,
que para longe levará toda gotícula;
e quando a vida te trouxer tormento,
enfrenta quieta ou então vira-lhe as costas,
pois se puderes perceber quanto é ridícula,
terás enfim da vida o quanto gostas.
FLUXOS
Unidos, fluiremos como um rio:
cada um de nós, ao invés de diminuir-se,
ver-se-á aumentado ao distribuir-se,
tal como fibras, compondo o mesmo fio.
Unidos, como a neve, que no estio,
depois de em tantos flocos a flutuar-se,
depois de em bancos sólidos firmar-se,
forma torrentes de impetuoso brio.
E em tantas direções, em cujas partes
nunca perdemos a individualidade,
porém multiplicamos pela união,
é assim conosco, ainda mais nas artes,
no que melhor criou a humanidade,
que, ao repartir, se aumenta a inspiração.
CANTO INDECISO XXV
Quanto à vingança, parece coisa inútil.
Nem sequer devo lembrar dos malefícios
que me fizeram. Prefiro em benefícios
dar a resposta à injúria tola e fútil...
Porém é mais por preguiça que bondade:
ter de forçar minha própria natureza!...
Esforçar-me ainda mais, sem ter certeza
que valha a pena enfrentar a inimizade...
Bem ao contrário, eu uso justamente
o impulso que me dá -- para outro feito,
deixando para trás tanto mal-feito...
Assim, se não me vingo, é claramente
porque nem acho que me valha a pena
combater esse mal que assim me acena!
CANTO INDECISO XXVI
Eu penso que se amor me cai ao colo
talvez me traga um ressaibo de vingança,
simplesmente porque tal esperança
já me custou mais ardor que desconsolo.
Vejo-me só no trabalho em que me enrolo,
no qual coloco mais penar do que ativança:
faço o que tenho a fazer, venha bonança
ou simplesmente castigo por meu dolo.
Ao perder cada centavo conseguido,
tão duramente, em taxas e impostos,
gastos em fins que de nada me serviram;
como gastei todo carinho oferecido,
em recompensa tão só pelos desgostos
que no fundo apenas sonhos me feriram.
CANTO INDECISO XXVII
Apesar de meus anos, nunca sinto
o peso físico da idade; muito forte
é ainda este corpo -- tenho a sorte
de poder demonstrar meu vigor, tinto
de sangue e sêmen, no poder distinto
de uma mente contida no meu porte,
que o corpo bem controla, num esporte
voltado ao resultado que pressinto:
deixar algo de mim para este mundo;
não me sinto cinzento de infortúnio,
nem excitado pelo ardor de abril;
sou da meia-estação, neste iracundo
combater todo o dia e ao plenilúnio
de um cérebro coerente e varonil!...
DESDÉM
Todos pensamos ter franquia da tristeza,
que nos fornece, com exclusividade,
ocasiões de despeito, de mágoa e de maldade,
que podemos expor em vitrinas, com certeza,
e exibir para os outros, em tola singeleza,
tal como nos exibem, com plena liberdade,
suas próprias lamúrias, em total sinceridade,
no julgar que apreciamos desditas sem beleza;
mas se algo aprendi e sinto verdadeiro
é que os demais revelam interesse só por si
e quando me procuram, não é por simpatia,
mas porque encontram em mim alvo certeiro
para o que buscam, em seu frenesi,
por receber de mim franquia da alegria...
IGUARIAS I
O homem vai à pesca e seu pescado
é recolhido na rede ou por anzol;
retorna à praia, orientado por farol,
onde seu peixe será cozido ou assado.
A morte vai à pesca e seu buscado
são cabeças ceifadas sob o sol
ou são almas caçadas no arrebol,
cujo destino é tão só imaginado.
Os peixes, nós comemos. Quem duvida
que a ceifadora apenas um festim
esteja preparando...? E quem nos diz
quais serão os convivas dessa lida...?
Que não nos plantam, quais flores num jardim,
mas nos devoram, com sorrisos senhoris...
REGRAS DA VIDA XLV
Nem sempre com dinheiro se resolve
um problema que tenhamos, porque, às vezes,
há soluções mais simples de aos revezes
espantar para um canto; não se envolve
o amor em presentes, simplesmente:
melhor é escutar, mostrar-se atento
e dispor-se a ajudar, nesse portento
de ter alguém ao lado, bem presente;
e é a mesma questão, ao ver a idade
instalar-se gentilmente em nossa vida --
não é uma plástica que a leva de vencida,
embora possa disfarçar a sua vontade,
ela se impõe; da juventude o esbulho
melhor se aceite em boa-vontade e orgulho!
RESSAIBO
Por mais que seja sincero o teu auxílio,
se for grande demais, ressentimento
fará brotar no alheio pensamento
e empanará de teu presente o brilho.
De certo, é ingratidão, porém é filho
de não poder pagar, tal sentimento,
se aquele que recebe esse alimento
nunca seguiu da ingratidão o trilho.
E agora vê-se nela: mais ressente
sentir-se ingrata por um tal presente,
que lhe desperta nalma ira mesquinha.
Muito melhor seria não ganhar,
sem ter de agradecer e imaginar
que não pode retribuir com quanto tinha.
VORAGEM I
[para Tristan Riet]
É normal se inquiete o homem pelo além,
por qual seja seu destino após o físico:
se algo existe, de fato, metafísico,
ou outros enigmas a decifrar também...
A inteligência se reduz, porém,
nessa contemplação do ultra-físico,
ao espectro da morte, no seu tísico
esqueleto, que nem mais os olhos tem...
Perder o corpo é destino irremediável
e causa da ansiedade mais constante:
de que forma escapar a tal voragem?
E intimamente cresce a insofismável
certeza de que o momento delirante
ser encarado pode apenas com coragem.
VORAGEM II
Quem, senão o espírito, promove
um tal desassossego e nos induz
a buscar o saber, ao ver a luz
que após o mais comum assim renove?
Pois se encontra mais além do que seduz,
na esfera do vulgar que o mundo move;
quem transcende a matéria que o envolve,
na metafísica busca que reluz...?
E nesse campo que povoa o pensamento
entidades incontáveis, aos milhões,
nos espelham mil imagens poderosas.
E somente no puro tratamento
com que se miram tais identificações
é que se captam as idéias mais valiosas.
VORAGEM III
De certo modo, se pode comparar
o ente físico a um televisor,
cuja antena captaria com vigor
as imagens que queremos enxergar.
Sem a antena, é difícil alcançar
a nitidez do mundo superior;
e o espírito se faz receptor
quanto maiores alturas escalar.
É lastimável se possa desligar,
por tanto tempo, esse fiel canal,
que nos permite acessar o metafísico,
pois enquanto não se torna a reinstalar
a ligação com o mundo espiritual,
continuaremos esmagados pelo físico.