SAUDADE APENAS & MAIS

SAUDADE APENAS I (8 jul 12)

não me partiste o coração: está inteiro.

só me mostraste amor ser ilusório,

que meu orgasmo era somente emunctório

e não um gosto de entrega derradeiro.

não me partiste a alma: foi canteiro

de obras em que ergui um responsório

e não um edifício; um incensório

que nunca deu fumaça, ou milagreiro

hissopo sem borrifo de água benta,

quaresma sem jejum, páscoa sem festa,

um carnaval vazio de fantasia.

mas nisso tudo a alma se contenta,

numa certeza como cinzas na minha testa:

que todo o tempo era só eu que te queria.

SAUDADE APENAS II

porque foste para mim a epifania

de um novo amor apenas potenciado,

uma quimera a voar em sonho alado,

a própria alma em ilegal ectopia.

meu pentecostes foste, que cingia

um coração um tanto amarfanhado,

com a inspiração que brota do pecado,

sem a pureza que da luxúria brotaria.

surgiste para mim igual que a espuma

no colarinho de um copo de cerveja,

que traz o cheiro e o gosto, mas resseca.

e te bebi igual se bebe alguma

miragem saborosa que se beija,

igual que a confissão de quem não peca.

SAUDADE APENAS III

assim, meu coração se recompôs

e dessangrou-se em canto de homilia,

na ascensão mesma que se cria

e que em cada poema se dispôs.

foi matrimônio sem lançar de arroz,

foi batizado sem ter água da pia,

pobre velório a que alguém não assistia

de um funeral sem vítima ou algoz.

mas desse modo, chegou a haver trindade,

pois no natal foi minhalma engravidada

na secreção do derradeiro beijo,

em cada verso um pouco de umidade,

em cada letra uma emoção cansada,

na eucaristia da ausência de outro ensejo.

POBREZA (9 JUL 12)

se eu tivesse asas, ninguém se espantaria

que eu voasse pelos ares, condoreiro;

que o coração se alçasse a teu terreiro,

em que, bem naturalmente, pousaria.

e se eu tivesse guelras, nadaria

por baixo dágua, inverso marinheiro,

o mar a deglutir, nesse brejeiro

mergulhar que a teus pés me levaria...

porém não tenho asas e tal voo

existe só no emular das mariposas,

quando eu me queimo em torno de tua luz.

tampouco tenho guelras e só escoo

meus sentimentos nas ondas fragorosas,

ao me afogar nesse teu beijo de alcaçuz.

LICOR DE GATO I (10 jul 12)

O que pensa a gata branca da mulher

enovelada no copo de cristal?

Irá morder tal rosto angelical

ou só farejará o quanto quiser?

Sua língua rosa não mostra sequer;

que lhe parece ser licor cordial?

Algum creme de aroma artificial,

algum sabor que não sabe se quer ter?

O que ela vê assim, nessa redoma,

por entre o vidro de perfeita transparência?

O que a leva a erguer-se, tão curiosa?

Pois certamente ante a beirada assoma,

a experimentar a inusitada redolência

de uma qualquer refeição mais saborosa...

LICOR DE GATO II

Porque, sem dúvida, aqui importa é o gato:

essa mulher em dinheiro disfarçada,

a auréola apenas de um seio apresentada,

nem é impura e nem mostra recato.

Se atreverá a fazer, enfim, contato?

Estenderá a patinha aveludada,

tão macia, mas com garra disfarçada,

um predador de suave espalhafato?

Ou tão somente espia, na sua intriga,

a cabeleira dourada que se espalha

dentro de tão inesperado recipiente?

Seria a imagem de sua dona antiga,

magicamente contida nessa calha,

após ter perecido em acidente?

LICOR DE GATO III

Talvez procure fazer-lhe um cafuné,

qual essa dona seu corpinho seduziu

e a acariciou até que ela dormiu,

menina meiga em que já teve fé?

Pois nem se sabe se virgem ainda é

ou se a função materna já cumpriu.

A qual galã seu ventre consentiu?

Para que boca seu mamilo está em pé?

Somente a gata sabe do mistério,

por quem o olhar se perde na distância,

por que se banha ali, em refrigério...

Enquanto eu mesmo me banho em redundância,

no redemoinho do autoimposto ministério

de ver magia em qualquer insignificância...

FILHOS I (11 JUL 12)

Antigamente, talvez fosse mais fácil.

Havia menos gente na cidade,

Laços estreitos na comunidade,

Eram parentes ou um amigo quase irmão.

Era possível educação mais grácil

Se ministrar aos filhos, na verdade,

Mas havia muito pouca liberdade

De se expressar liberdade de opinião.

Os livros vistos com certa desconfiança,

Na escola se ensinava o catecismo,

Ir ao cinema só de acordo com a censura,

Mas se forjava assim em cada criança,

Mediada pelas fendas do mutismo,

Profunda dose de malícia pura.

FILHOS II

Mas certamente havia mais respeito

(Sinônimo de medo ou timidez);

Na ignorância se escondia o que se fez,

Falava-se bem menos em direito.

A menor falta era levada a peito

E se ensinavam princípios com dobrez:

“Faça o que eu digo,” se dizia em altivez

“Não o que eu faço!” em hipócrita conceito.

Hoje as coisas mudaram, realmente,

Na propensão da novel psicologia;

É bem inútil impor velhos valores.

E se acreditas ter costume indecente

Esse que faz a teu filho companhia,

De nada serve demonstrar-lhe desfavores.

FILHOS III

Caso você lhe conceda liberdade,

Eles mesmos aprenderão a discernir

E a resolver quais amigos repelir

E quais conservarão na mocidade,

Mas caso insista em enxergar nisso maldade

E de encontrar-se com alguém os proibir,

Eles tudo farão para iludir

E isto somente criará deslealdade.

Portanto, dê-lhes sempre um certo espaço

Para buscarem até más companhias:

Nunca se sabe de que lado vem o mal.

E muitas vezes o bem é mais escasso

Justo na relação que aprovarias,

A mais propensa para um vício natural.

FILHOS IV

As novas leis, cada vez mais complacentes

Buscam dos pais retirar a autoridade.

Cada novela degenera em qualidade,

Propondo exemplos moralmente negligentes

E na Internet qualquer intimidade

É invadida de modos diferentes;

Os videoguêimes massacram inocentes

Que ressuscitam com a maior facilidade.

Talvez melhor que um estado de exceção,

Mas corrupção não é democracia;

Hoje é difícil um bom exemplo impor.

Melhor mostrar-lhes que você os apoiaria:

Castiga a vida o honesto sem pudor,

Por mais que isso nos parta o coração.

VAIDADE MANSA I (17 jun 12)

Ela se olha no espelho ampliador,

discretamente desnuda contra o espelho.

O espelho pequenino dá o conselho,

somente um olho no seu reflexor.

O seu olhar se concentra com ardor

na superfície obediente de seu zelo.

Para o conselho do espelho faz apelo,

toda a minúcia em seu olhar perscrutador.

O seu olho no espelho não se espelha,

apenas olha o rosto espiador

e seu reflexo mantém igual palor,

em sua busca para achar igual centelha,

enquanto os olhos perdidos no reflexo

contemplam outro espelho em igual nexo.

VAIDADE MANSA II

Parece jovem seu corpo de mulher,

que o espelho espelha em sua juventude.

Já o reflexo reflete em olhar rude

a sua incerteza quanto a seu mister.

Que todo espelho não mostra o que se quer,

mas o que abrange em sua magnitude.

Não se busca que o espelho nos escude,

nem que disfarce o nosso ser sequer.

Se bem que o espelho apenas nos refere

o reflexo do reflexo da imagem.

No olhar alheio existe outra sondagem

que, dependendo do ângulo, confere

a displicência ou o favor da luz,

cujo reflexo causa inveja ou nos seduz.

VAIDADE MANSA III

Pois nunca vemos a imagem verdadeira.

Talvez o tato mais nos revelasse,

nesse momento em que o reflexo tocasse

de nossa mão a sombra assim ligeira.

Se o toque dessa sombra alvissareira,

nas palmas toda a sombra acarinhasse,

todo o reflexo nos dedos se estampasse,

que a pele contra a pele é interesseira.

O olhar, porém, só consegue captar

o quanto a luz se nos dispôs a dar,

a luz do Sol batendo mais cruel,

a luz elétrica bem mais a acarinhar,

enquanto a luz da vela busca achar

na sombra em pele um gosto de ouropel.

VAIDADE MANSA IV

Pois se percebe na mulher do espelho

de seu próprio limite a aceitação.

Já não espera ter grande sedução,

mas quer bem conservar seu aparelho

enquanto o corpo não se torna velho,

numa imagem feminil de encantação,

buscando mais sutil satisfação

em seu semidepilado supercílio.

E traz nos seus quadris arredondados

e nos seios protegidos pelos braços

a promessa de um ventre maternal,

querendo ser cingida por abraços

de mais constância, não amplexos apressados

para cumprir a sua função mais natural.

ESPELHO DO ESPELHO I (18 jun 12)

Vejo no espelho a imagem desse espelho

em que as costas de outro espelho se refletem.

As molduras desse espelho se intrometem

e o rosto me fustigam, qual um relho.

À imagem desse espelho me assemelho,

a refletir só o que os olhos me acometem.

Quero que os olhos a imagem tua completem

no sangue puro de estridor vermelho.

Vejo teu corpo no espelho em corpo inteiro,

vejo no espelho pequeno só teu olho,

amplificado para a maquiagem.

E nesse espelho vejo o espelho derradeiro,

com que, no meu desejo, me desfolho,

de fazer parte integrante de tua imagem.

ESPELHO DO ESPELHO II

A cada hora que passa, essa tua imagem

é refletida pela luz do espelho:

quero roubar um reflexo mais velho

e conservá-lo em camafeu de aragem.

A cada hora que passa, outra visagem

se reflete de teu rosto em talho e relho:

quero tomá-la só para meu conselho,

não mais precisas, afinal, dessa esfoliagem

que a luz retira de tua pele e logo deixa

abandonada nos momentos do passado,

cada reflexo junto a outros descartado,

enquanto novo brilho em ti se endeixa...

Quero beber esse reflexo dourado,

igual ao sumo cintilante de uma ameixa!

ESPELHO DO ESPELHO III

E de tua sombra vejo outro reflexo:

mil sombras já deixaste para trás.

Nada te roubo se seguir atrás

Para enrolar as silhuetas de teu sexo.

Que nesse rolo envolva o meu amplexo

que a sombra antiga plenamente satisfaz

e a sensação de posse me compraz

no gozo escuso desse estranho nexo.

Eu quero a luz da sombra que abandonas

e não me atrevo a pedir a que acompanha

o teu andar, a interromper a luz.

Mas essas sombras, que não têm mais donas,

ficam perdidas e do Sol à sanha,

a desfazer-se em acinzentado pus.

ESPELHO DO ESPELHO IV

Assim eu quero as sombras para mim

que se repetem tanta vez no antanho.

O meu estoque se fará tamanho,

bem mais compacto que tua posse, assim.

E tomarei teus reflexos de cetim,

que puxei desses espelhos de teu banho

e os misturarei em simples ganho

com as mesmas sombras que roubei, enfim.

Nesse conjunto de sombra e de reflexo

terei a imagem conjunta do teu ser

e poderei abraçar-te ao bel-prazer

e derramar-me sobre ti no amplexo

desse contraste de farrapos de arlequim,

em brando leque de esplendor carmim.

ORQUÍDEA TRANSSEXUAL I (19 jun 12)

Esta orquídea me parece masculina;

pelo menos, dá a impressão de ter bigode...

Sob um pequeno nariz que se sacode,

de que pistilos se projetam, em fibra fina.

É amarelo o nariz, vermelha a crina

de listras recobrindo esse pagode...

É amarela a boca, que assim pode

sobrepor-se a uma barba de igual sina.

São olhos cegos as pétalas amarelas

e certas lágrimas rosadas desfalecem,

tal qual a lamentar sua condição;

sinapses compondo, paralelas

às que as orquídeas femininas tecem,

enquanto esta não selou definição.

ORQUÍDEA TRANSSEXUAL II

Claro que as flores possuem dupla função!

Certamente foram feitas para os vasos

ou então para alegrar nossos acasos,

a rainha a homenagear da criação!...

É uma tolice pensar que a brotação

só se destina a esses beijos rasos

das abelhas a adejar pelos ocasos:

foram feitas para a humana sedução!...

É lamentável, portanto, a situação

dessas flores que nascem nas florestas

ou quaisquer localidades mais desertas...

Para quem as infelizes se abrem, então?

Se não há olhos para a contemplação

Dessa beleza em perfeita floração!...

ORQUÍDEA TRANSSEXUAL III

São pobres sucedâneos os beija-flores,

os marimbondos e as vespas multicores.

Toda flor só quer mostrar seus esplendores

para a alegria da humana exaltação!...

Por isso os olhos dessa orquídea são

aveludados em lacrimosa carnação,

fotografados em total desilusão:

queria ser presente dos amores!...

E ela se sente, assim, abandonada...

Não foi colhida! Deve ser transsexuada,

embora tenha seus estames e o pistilo...

A bela orquídea nuançada para Espanha,

que assim perdura, em ilusão tamanha,

qual uma ogiva desativada em silo...

MEMÓRIAS COAGULADAS I (20 jun 12)

Meus versos eu não busco publicar, porque

conheço o seu valor e sei que pouca gente

os poderá compreender perfeitamente,

nesse profundo maneirismo que se lê...

Mas cada linha achará um leitor que crê

retratado estar sendo totalmente.

Não perceberá jamais que é indiferente

que qualquer significado se lhes dê...

Os versos nem são meus! Eu faço apenas

o que minha mão escreve... São dezenas

de explicações que cada linha enseja...

E nem mesmo me surpreendo que assim veja

nesses poemas cem mensagens a mim mesmo,

quando recordo como os grafei a esmo...

MEMÓRIAS COAGULADAS II

Na verdade, me surpreendo que apreciem

esses poucos que gostar até asseveram.

Meus sentimentos desconfio se eles leram,

ou se, de fato, nem notaram, quando adiem

essa leitura para tempos que se estiem

e não retornem quando então esperam.

Há um momento certo que nos geram

essas Parcas que inconscientes nos vigiem.

Pois certas coisas, uma vez adiadas,

absolutamente não podem retornar,

porque no entorno mudaram de nuance,

igual que as catedrais tão repintadas

a cada hora do dia, a fascinar

esse pintor, que à própria luz desmanche.

MEMÓRIAS COAGULADAS III

Já muita vez falei, anteriormente,

que os versos não são meus, mas de quem lê;

existe neles o que qualquer lhes vê

e não o quanto pus da própria mente.

Assim, se leres, teu valor subjacente

emerge à tona e subsiste, como se

fosse de fato real... e então se dê

uma fusão com a expectadora mente.

Não é o que está aqui, é o que parece:

para um será blasfêmia e ao outro, prece;

se um não encontra nada, o outro achará nexo,

mas cada poema tem seus foros de mensagem

e se faz caleidoscópio de mensagem,

que pode ser de pudor ou ardente sexo.

MEMÓRIAS COAGULADAS IV

São o teu sangue e tua carne que revestem

os ossos do soneto, puro vento;

é a tua mente que lhes dá o assento

e pouco importa que os outros te contestem.

Somente o teu critério lhes dá alento,

teus arremessos que no verso encestem,

teus sentimentos através deles se testem,

qualquer que seja o grau do assentimento.

E quando outrem achar ser o contrário,

também demonstrará total razão:

é somente o seu critério que então vale.

Cada um senhor de seu conceito autoritário,

cada um escravo de seu próprio coração,

que cada um o manifeste e não se cale!...

MEMÓRIAS COAGULADAS V

E se amanhã vieres me reler

(não a mim, mas ao poema que te dei),

recorda o que hoje mesmo te avisei:

significado bem diverso pode ter.

Pois representa tão só o teu querer,

o teu sentir, pensar, és tu a lei,

rei ou rainha, se tua atenção ganhei:

pois me submeto a teu pleno parecer.

Pois nada sei e nada quero impor.

São apenas essas linhas que se cruzam.

Não passam, afinal, de alguns respingos.

Indiferentes a teu prazer ou dor,

cada palavra atores que se acusam,

e bem depressa se desfazem em outros pingos.

MEMÓRIAS COAGULADAS VI

Não obstante, são lembranças coaguladas

de um passado que já foi e não é mais,

mil incidentes encolhidos no jamais,

não mais que sonhos um dia estilhaçados.

Que são com tinta e sangue entrelaçados,

inseridos lentamente no ademais,

barcos sem leme, sem rumo e sem estais,

não são insetos no âmbar aprisionados...

Mas aqui se acham as memórias dos antigos,

que de algum modo a mim utilizaram,

em seu repasse a novas gerações...

Fiquem contigo esses espectros amigos

que no teu peito talvez já se enraizaram

e que os transmitas a futuras multidões!...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 11/07/2012
Reeditado em 30/07/2012
Código do texto: T3772457
Classificação de conteúdo: seguro
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