Dissonância

Tenho duas bocas.

Uma que toco e não beijo.

Outra que nem beijo, nem toco.

A boca que só toco e não beijo tem dentes claros.

De marfim. De taco.

E uma língua vermelha que sempre enrolo

para que os dentes me toquem.

E quando estou diante da boca,

sou só.

Só som. Só música. Só dedos.

Velozes dedos que tocam, arranham,

escorregam, derramam, ferem,

tiram o sangue - da boca.

O sangue que escorre dos ouvidos

estala na garganta

no silêncio raspado e cuspido

dos tons descompassados.

A boca que nem toco, nem beijo,

é a boca que quero.

É de madeira encarnada, teclas amarelas,

com uma flanela carmim.

Não enrola - transita suave.

Porque quando estou diante desta boca,

sou repleta.

Silêncio. Sorriso. Respiração.

Tudo é taco nos tacos amarelos

nas flanelas e teclas.

O ouvido ensurdece e a alma sangra

pelos cantos da boca.

Esvair-se. Entregar-se.

O desejo não consumado.

Quando a boca que toco se fecha,

fecho em mim o que ainda me resta.

Quando a boca que desejo se abre,

em mim renasce o que não possuo.

Porque amo e desejo ambas as bocas.

E vivo assim, em amarga dissonância,

não beijando a boca que toco

- nem tocando o coração da boca que quero!