PIRAS DE SONHOS

PIRAS DE SONHOS I – 02/07/2010

eu beijo o cheiro que brota da terra

e me recobre a língua, em terciopelo;

eu beijo o cheiro que brota do desvelo

que traz a natureza e em mim encerra.

eu bebo o cheiro que descarta a guerra,

esse cheiro metálico de anelo,

cheiro drástico da vida feita em gelo:

eu bebo o cheiro que minha mente enterra.

esse cheiro real de mortandade,

sem que sejam necessários homicídios,

que a natureza é amante de hecatombes.

e nesse cheiro, em que dorme a humanidade

eu percebo a multidão de sonhocídios

em que teu próprio suicídio escondes.

PIRAS DE SONHOS II

eu lambo o cheiro que sobe desde o cais

e me penetra, em som de maresia,

esse cheiro que mata e que me cria,

esse cheiro que se ergue do jamais.

eu sugo o cheiro que salta do demais,

que se exalta e que sofre em nostalgia,

esse cheiro que me acende e me espargia

do próprio sangue orvalhado em mil sinais.

que me converte em geada matutina

toda a respiração que sai de mim,

que os cheiros percebidos se sublimam

e que essa bruma seja peregrina

e se difunda pela terra assim,

por onde quer que quimeras se comprimam.

PIRAS DE SONHOS III

escuto o cheiro que provém dos ares,

esse perfume de assombro e latrocínio

que é furtado de cada lenocínio

e se derrama em vagalhões sem pares;

o cheiro agudo que vem pelos ouvidos

e pelas coanas droga minhas narinas,

cheiro de montes e de velhas minas,

cheio de tempos há muito já esquecidos;

o cheiro que eu escuto vem das matas,

do pipilar dos pássaros ferozes,

do cricrilar dos insetos devorados;

e escuto o cheiro das antigas datas,

nesse diálogo de vítimas e algozes,

em que todos nos achamos irmanados.

PIRAS DE SONHOS IV

eu cheiro o fogo no fundo de meus olhos,

minhas pálpebras se encurvam de desejo,

por trás dos cílios a resguardar meu pejo,

sob a esclerótica o som de meus refolhos;

eu cheiro a chama em irrequietos molhos

que se entrelaçam e rugem num só beijo,

nos lábios dessa flama todo o ensejo

se despedaça na fúria dos escolhos;

mas a essa chama eu amo de paixão;

é a luz que me requeima e que me aquece

e o fogo cheiro por força de um olhar;

eu cheiro a pira com o som do coração,

faísca pura que no meu peito desce

e minhas artérias desfaz nesse enlaçar.

PIRAS DE SONHOS V

porém é o cheiro do sono que me anima

e me alimenta ao longo do caminho,

do perfume do sonho me avizinho

e despedaço em esmeril que mima;

é esse olor de sonho que me aclima

ao perspirar do dia comezinho,

em que o dreno do real é mais mesquinho,

enquanto o sonho me amplia para cima;

sem o cheiro do sonho, minhas narinas

se entupiriam com os odores desta terra,

constipada de ódio e malquerença;

mas o aroma dos sonhos novas sinas

me aponta e em círculo cálido me encerra,

doce esperança em que mantenho a crença.

PIRAS DE SONHOS VI

toco a fragrância que provém do vento,

é nos meus dedos carícia fugidia,

as minhas palmas a beijam numa orgia,

múltiplos lábios que reter eu tento;

o vento me refresca enquanto esquento,

seja de noite ou no calor do dia,

quando as bocas cristalinas perseguia

no pleno embate desse sabor lento;

tal qual se alma fosse esse perfume,

trescalado só os deuses sabem de onde,

sem ser aroma de rosa ou malmequer;

puro cheiro agridoce de azedume,

que sempre anseio que minhalma ronde,

essa alma-brisa com gosto de mulher.

PIRAS DE SONHOS VII

no fogo desse altar é que me banho,

fogo de Vênus, não fogo de Moloch:

a labareda deixo que me toque,

nessa nudez de que não mais me acanho,

que o sabor dessas flamas é tamanho

que sua visão me empresta novo enfoque,

nesse universo novo que me invoque,

tal qual invoco os deuses nesse lanho;

eu me queimo diariamente nessas piras

de frenética e ilusória cremação,

que o corpo benze e que minhalma escova;

essas fagulhas soando como liras,

que me penetram de novel inspiração,

enquanto a mente inteira se renova.

PIRAS DE SONHOS VIII

assim esfumam-se os espectros medonhos

de mil cuidados e preocupações,

recobro a seiva de minhas sensações

e em cada canto encontro novos sonhos;

talvez escreva versos mais bisonhos

quando essa chama enche meus pulmões,

queimadas as mais duras percepções

no combustível dos dias mais tristonhos;

e vivo assim nessa tranquilidade

de só fazer o que tenho de fazer:

como um judas, tudo faço bem depressa,

talvez traindo assim a minha verdade...

mas só me dou o direito de querer

o que a razão como possível meça...

PIRAS DE SONHOS IX

destarte, se recebo um dom gratuito,

como o perfume que me traz teu seio,

acolho a bênção sem qualquer receio,

por mais que o dote chegue em tom fortuito;

por não querer o que quero como intuito,

desse trono em maravilha não me apeio;

por uns momentos de mim afrouxo o freio

e sei como tal graça apreciar muito;

bem mais que se tivesse me esforçado

para tê-la nas mãos e me frustrasse,

porque a vida acicatou-me a esperar

por esses frutos raros que a meu lado

caíram, que nos lábios aparasse,

qual recompensa do aguardo e do penar!

PIRAS DE SONHOS X

mas não foi fácil tal longanimidade:

só se consegue cortejar bonança

quando se põe de lado a esperança

e se mantém relações com a falsidade;

então premiam-se os sonhos de criança,

que a adolescência negou, em sua maldade,

pois quem foi alvo da perversidade

não mais deseja com idêntica pujança;

assim, para tornar-me no que sou,

tive de erguer fogueiras para os sonhos

e os vi subir aos céus, a crepitar;

mas nem por isso o meu ideal findou:

pelo contrário, aspirei tisnes bisonhos,

dos quais fiz tinta para o meu cantar...

PIRAS DE SONHOS XI

de minhas piras novos sonhos brotam,

envolvidos na fuligem da fumaça

e ali beijo esse cheiro que perpassa,

igual que os deuses a quem ofertas dotam;

assim tomo os pesadelos que desbotam,

não os apago, por ser lágrima escassa;

toda a tristeza que minhalma embaça,

faz-se lenha de canções que não se esgotam;

cada nesga de sonho torno em acha

e me amarro na estaca da fogueira,

sem me importar com a força desse ardor;

o fogo se ergue e a resina engraxa

nessa pira à poesia hospitaleira,

quando ao invés de gritar, canto de amor.

PIRAS DE SONHOS XII

quando meus versos faço em holocausto

é minha própria alma que ofereço;

eu subo em fogo e na fumaça desço,

aspirando a mim mesmo em largo hausto;

todos os sonhos consumidos nesse fausto

têm dimensões que nem sequer eu meço

e às vezes sofrimentos mais eu peço,

se por momentos sinto o estro exausto;

talvez até eu faça mais um drama

desta minha vida do que de fato o é,

mas afinal, sou dos homens o reflexo;

não busco a glória e nem tampouco a fama,

porém celebro tal auto-de-fé

para emprestar-te à vida um certo nexo...

William Lagos

Tradutor e Poeta

Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com