Da planície das coisas por escrever

Da planície das coisas por escrever nasceu um lírio

sem trono

sem tecto

sem espelhado afecto.

Nasceu parido do ventre dos lamentos e gemidos,

dos ruídos derrotados e vencidos das cigarras.

Nasceu cuspido na cara desmaiada das palavras

cruas. Maltratadas.

Da serra elevada aqui ao lado

rebolam-se nervos cardados de memórias

num rosto moreno, a navegar-se em moradas de charcos.

Barcos áureos sem rumo, sem velas, velejam-se

ao som da voz cantada. Da voz que, cansada de si, pranta,

em longínqua estrada.

Perco-me entre o plano e o composto.

Rebusco a chama distante do teu corpo,

a lava adormecida na noite do enigma.

Busco um momento

na seiva cálida do teu gosto

na saliva lenta da renuncia a escorrer-se aberta

na esteira pálida da palavra.

Num adeus distante de gestos gastos e repetidos,

no tédio déspota dos sentidos.

Na planície acerada dos trigais,

não te encontro nem sequer me encontro mais.

Mergulho no charco pardacento, o verbo, a palavra,

o sentimento.

Na boca bafiosa sinto gelo, moribunda rosa.

No estômago o soco, o invólucro transparente do nada.

Sopra da serra um mundo agreste,

que me veste do fim e me despe do começo de mim.

Da planície das coisas por escrever,

das coisas por viver, nasceu um lírio nado-morto

a pontear de roxo um espaço devoluto de oco.

Ao longe, na boca do mar, nasce agora o Sol-posto.

Mel de Carvalho
Enviado por Mel de Carvalho em 28/05/2007
Código do texto: T503881
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.