Nestes voos intemeratos

Após o último mergulho nas águas mornas

do oceano neste mês exageradamente quente

de agosto, saías da água, tal sereia e esvoaçavas

para a toalha que se deitava na areia de espuma

na ânsia de se aconchegar

ao acolhimento do teu corpo molhado

O dia na sua claridade fosforescente

lambia a tua pele como as vagas

lambem o côncavo das rochas

e deixava nela uma teia de aranha

esbranquiçada Secava-te o corpo, onde

vertia o sol no teu ventre, o suave calor da manhã

Os meus olhos, não sendo já os meus olhos,

desenhavam movimentos concêntricos

desde a reentrância suave desenhada

pela concavidade dos teus seios até ao triângulo

da tua púbis, que se acolhia num recanto brando

do teu corpo sob a fina seda que o cobria

O teu sorriso amordaçado abria uma frincha

clara nas trevas da noite, quando descia

no velho quarto das nossas esperanças,

enquanto as tuas mãos buscavam

na extremidade dos teus braços de polvo,

a presença do meu corpo nu que tardava

em deitar-se silenciosamente a teu lado

Sentia uma maré-cheia rasante dentro

de mim no aproximar da noite,

como se quisesse fugir num êxodo cabisbaixo

em recordações constantes,

que me martirizavam ainda mais

nestes lilases do crepúsculo

Dissolvia-me no escuro que entrava

cada vez mais irresistível

à minha ânsia de fugir pela janela

E tu, às apalpadelas, como um polvo

escorregadio, fugias a tactear-me no silêncio

daquele quarto E eu, como se em disfarce,

como numa procura do interruptor

que tardava em encontrar, ia avançando

com gestos trémulos de ternura

Amanhecias no silêncio imóvel,

sibilino, como as asas duma borboleta

ainda adormecida, que em profecia

acordava aos poucos e espreguiçavas-te

apalpando os contornos da manhã

Saías das sombras da noite e pousavas-te,

como a borboleta, na balaustrada que separava

o jardim dos sonhos da nossa casa

Via-te o contorno difuso do corpo

na transparência do sol que coava

os raios até à soleira da porta

Abrias ligeiramente as esguias pernas...

moldavas-te de tal ordem de encontro

ao sol que te espreitava o baixo ventre

ávido por se dar, que eu, no desfilar

daquela porta aberta onde chegara

sem me veres, adivinhava no pronunciado

do vulcão prometido essa penumbra apetecida

Adivinhava, estando tu mesmo de costas

para mim, o teu sorriso para ninguém

na alegria de uma dimensão desconhecida

Trazias-me à ideia as imagens dum bordel

e as fantasias pelo meu cérebro prometidas

Comprazia-me imaginar-te nua…

insinuava-me em sonhos por sonhar...

Como um peixe ancorado num anzol

assim tu, no cimo do meu ventre, vertendo

nele involuntários estertores de prazer

E os meus dedos a escorregarem

pelas sardas do teu corpo, a regressarem

ao perfil do teu ventre, como se vertessem

nele a constelação das gaivotas

que na outra extremidade da praia

disputavam os restos da pescaria

E o sol a lamber-te a pele...

E as vagas a bater na concavidade dos rochedos

onde a sombra se escondia a murmurar

silêncios proféticos que se desfaziam

como a espuma na memória de nós...

...e depois,

deixava-te este poema

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Alvaro Giesta in O Ventre das Palavras

Alvaro Giesta
Enviado por Alvaro Giesta em 02/02/2015
Código do texto: T5123710
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