Um Rio que Habita meu Coração

Se não fosse o oceano condescendente com sua doçura,

Nem mesmo em sua mesura tu saberias o que és,

Pois não significas o amargor, nem o sal de seu paladar.

Que é a parte intima da lágrima desse rio que habita o meu coração,

Poderias então repensar a essa altura, sem engano, que não é mar,

Refazendo-se como o fogo sobre a água despeja seu grito, sua dor,

Na fumaça ruidosa do fulgor que se consome e se transforma.

Mas tu sabes, em meu corpo existe apenas fome,

Mágoa nenhuma que colecione a vida, nada que venha com rancor.

Apenas a sede crescente de gritar seu nome...

Posso clamar ao vento para que perca o rumo,

Sua prodigiosa estrutura de desarrumo lhe provê o silêncio,

Ou a fonte pecaminosa,

Como o medo da tempestade me faz chorar, prisioneiro de sua ilusão,

Pelas rudes paisagens que trazem apenas tristeza,

Sem que tenha, porém, a certeza,

De que essa é a dor de entregar-lhe meu coração.

Juro(!), nem Gaudi pode expressar as deformidades góticas

e funcionais de sua estrutura,

Que é tão sensata quanto os arcos parabólicos sob o terraço da Casa Milà

No quarto permanente de minha câmara escura,

Feita com os seixos do muro entrelaçado com frutos doces de maracujá.

Roto, vou girando em espirais suicidas

por onde houver uma réstia de luz.

Flutuo hipnotizado sobre o voejo fino e reluzente do sonho dessa vida,

Absorvendo a ferida que causa nos olhos as lâmpadas intermitentes dos jardins,

Repleto das flores de espírito miscigenado por pétalas de entretons azuis,

Supostamente letradas de versos simples e sem fim,

Que ocultavam as pedras de puro brilhantismo que me indicavam a saída.

Não como os pássaros demonstravam animosidade

em acrobacias nas tardes gloriosas,

-Aqueles que trazem a alegria jocosa do destino,

Pousam nos fios e tem asas poderosas-

Mas, como frágeis borboletas levadas ao vento,

Sem oportunidades, como as pás de um moinho ao relento,

Ou mesmo um instrumento sem cordas, sem alento,

Que não pode saudar cada mudança de sua alma com uma canção.

Saiba que este é o lugar para ser bebido,

Onde meu íntimo, que se transforma em alimento, vem para ser comido;

Seu coração!

Saído daquele poço que um dia abri para sorver a paciência,

Que continha ramos incrustados em suas paredes de fascinação.

Sabia haver ali ínfima parte desse gosto que senti,

De amar a liberdade, quando provei-a fresca, de nua decência...

Indiferente aos elos da longa corrente desta existência,

Que a encontrou naquele quarto, naquela noite, sem a sua ira.

Verás que não sou outro alguém aprisionado

pelas coisas passageiras de uma vivência sem tê-la, de algum modo, sentido.

Porém, trago a consciência marcada pelos grilhões

Ainda sangrando no tornozelo ferido,

Sobre os mesmos pés lavados pelas águas desse rio

Sem lhe dizer palavra alguma por algo que sofro.

E assim tendo amado, mergulharei novamente no frio poço

coberto pelas nossas histórias,

Rodeado pela aparição maquiada de raras orquídeas,

Que, por ora, me remetem as tuas memórias...