A flor e a infância

Eu sei
Você fez birra por quase todos os cantos
Quebrou sua paz
Rangeu dentes alheios enquanto apertava os seus
Escondeu os gestos
Fez protesto contra tudo que vinculasse ela a você
Não aceitava ser chamada de flor
Coisa esta, infantil, banal
Por um tempo foi eficaz
Enquanto tudo era caule e promessa de botão
Ainda assim ela forçava
Ensinando o que você queria desaprender
Sei bem...
Você queria ter apenas um
Eu
Inteiramente seu
E por isso gritou tanto
Até que conseguiu
Deixou seu jardim
Partiu
De repente, era a mais bela entre as mulheres
Sem em nada parecer com o jardim que te gerou
Isso era o que pensava, você
Agora dona do seu eu
Esbelta, elegante
Triunfante nas agendas sociais
Radiante?
Sim, cada vez mais
Tão cheia de pétalas
Tão cheia
E tão cheia
Que murchou...
Não sustentou o próprio peso
A alma carregada
O perfume inebriante a sufocou
A beleza desejada mandou cobrança
Desfez contigo as alianças
Você então
Rogou
Pediu aos céus
Os perfumes dos outros tempos
Em vão
O caule deixou sua face envergada
Nada mais era tão urgente
O vento se pronunciou
As pétalas se foram junto com ele
Aquela que fugiu de seu jardim
Voltou
Lá se deparou com suas raízes
Entrelaçadas
Lá também estava ela
Sob calma chuva fina
Tímida, acanhada
Esperando paciente
A flor desgarrada
Recebeu você com um sorriso
Que te fez resplandecer
Se entender por dentro
Você abriu novamente um botão
Agora mais ameno
Mais discreto
Foi preciso multiplicar-se
Tamanha alegria que não se cabia numa só
E por você nasceram milhares
Estava ela a te esperar:
Sua infância descartada
Sua mais bela raiz
Seu mais lindo botão
Não era preciso mais lutar
Nem dela se avergonhar
Tudo o que fora bobo e infantil
A flor agora precisava
A flor madura
Experiente
Se fez contente
Quando foi chamada de flor
Novamente
 
Carlos SJ
Escritor, Psicólogo, Músico
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