Ode I - Aquele dia soberano
I.
Aquele dia soberano
Que eu pra sempre hei de lembrar
Cheio de graça e de engano
De mil anjos pelo ar
Enlevado neste arcano
Cantando hei de louvar
Já na cítara entoando
Suaves notas de amor brando
II.
Oh ouvintes deste canto
Não há arte assim tão pura
Que descreva o doce encanto
E os efeitos de ternura
Que naquele dia santo
Transformaram mi'a Ventura
Mas pra que a glória sua aumente
Cantarei a toda gente
III.
Nunca amante algum sentiu
Uma glória parecida
Quando o Amor a mim surgiu
Numa tarde enternecida
E voando então fugiu
Levando a minha vida
Uma hora ao rude Inferno
Outras mil ao Céu eterno
IV.
Já a Primavera graciosa
Pelos Céus esvoaçava
Com um tocar que a terra airosa
De mil cores matizava
Junta aos campos, suspirosa,
A alada Flora suspirava
Ansiando o beijo ameno
Do almo Zefiro sereno.
V.
Entre as nuvens cor de neve
Suavemente se ouvia
De Progne o choro leve
Numa doce harmonia
Discantando já quão breve
Perdeu ela sua alegria
Assim também em um momento
Perdi eu meu pensamento.
VI.
Oh como estava descuidado
O coração (um dia) meu
Quando aquele olhar sagrado
Primeiro me apareceu
E num sonho abençoado
A minha alma adormeceu
Flutuando no ar divino
O qual soprou o meu Destino.
VII.
Os céus se abaixavam
E todo astro e toda estrela
As aves não cantavam
Encantadas só de vê-la
E as flores que ali estavam
Contemplando a vista dela
Rezavam à sua face
Que ela as visse ou as tocasse
VIII.
Seu olhar era um cristal
De faíscas cintilantes
Seu olhar celestial
Duas estrelas radiantes
Seu sorriso angelical
Rosa, pérolas rutilantes
O seu cabelo ouro puro
Que fazia o ouro escuro.
IX.
Ante a luz do seu sorriso
quase ao chão desfalecendo
Contemplava o lindo viso
O juízo meu perdendo
Crendo estar no paraíso
E não ali de amor morrendo
Envolto, enfim, numa aura calma
Suspirei, suave, dentro d'alma:
X.
"Bendito seja o dia e a hora
O mês o lugar e a estação
que o menino lá de outrora
Transpassou meu coração
Atingindo o ser que o adora
Com tal fúria e tal paixão
Que desfez num só instante
Um peito de diamante.
XI.
Quando entre as flores, escondida,
Do arco a seta disparou
Que pelo ar ensandecida
O frágil peito me acertou
E de meu sangue embebida
Cravada em mim ficou
Tomando assim vingança
Da minha austera esquivança
XII.
Oh efeito admirável
Que crer me fez que é possível
Transformar o imutável
E sentir o insensível
Tornais rico o miserável
E eterno o corruptível
Quando pousas sobre mim
Qual celeste serafim
XIII.
Desta carne e deste pranto
Mata já teu apetite
Usa a lira de acalanto
Rude filho de Afrodite
Tira a vida, até o manto
De ferir-me não hesite
Pois de teres me vencido
Levo a glória de perdido".
XIV.
Suspirando, assim, silente
Estas linhas delicadas
Que o Amor suavemente
Da alma as tinha transladadas
Despertei, inda, dormente
Das alturas sublimadas
Que aquele olhar tão lindo
Fez-me, preso, ir subindo
XV.
E eu já sem saber por onde ia
Ou como havia chegado ali
O por quê chorava e ria
Como ou quando me perdi
Tomando a cítara m'ia
Prostrado eu me rendi
Inflamado pela chama
Que envolvia aquela dama
XVI.
E desde então m'é ordenado
Pelo deus que os deuses temem
Que eu cante em todo o lado
Os golpes que me espremem
E ardendo apaixonado
Em divinas fráguas queimem
Minha alma, corpo e ser
Até o dia em que eu morrer!