A queima-roupa
Entrava na sala distraído
Como quem pisa na terra ou no céu
Tinha o pensamento distante
E nada vislumbrava.
Era um momento daqueles em que estamos puros, ingênuos, incautos
Exato momento em que a Natureza escolhe para nos arrebatar
E diante do inesperado nos mostra quem somos
Põe tudo à prova
Tudo.
Primeira semanada de aula
Daquele ano de mil novecentos e oitenta e três..
Dei de cara com ela
Forrava a mesa da professora com uma toalha florida
Me olhou com um olhar
Que era a ternura, a felicidade, a amor, o aconchego
Era a glória da vida
E tudo mais que existe de bom nesse mundo.
E o seu sorriso de lábios de batom vermelho, muito vermelho
Contrastava com seus olhos castanhos
Que banhados pelo sol do meio da tarde
Entrando pelas imensas janelas da sala de aula
Tornavam-se claros e cintilantes
Como duas bolas de gude
A me hipnotizar.
Em troca cedi o meu olhar...
E de como ele figurou só ela poderia dar testemunho
Pois um momento como esses é assim
É como uma peça encenada num teatro sem platéia
Pertence ao ator e à atriz
E a mais ninguém.
O que sei é que naquele meu olhar
Estava contida toda a odisséia dos meus doze anos de vida
Todo o meu ser
Tudo o que eu era
Tudo o que eu tinha pra dar
Todo o meu desejo
Tudo de uma vez
Naquele olhar.
A Senhora Natureza havia me pego em sua emboscada
Me acertado um tiro a queima-roupa
E meu peito não era a prova de balas.
E naquele ano tudo era aquela menina
O gosto da bala de framboesa era aquela menina
A canção que tocava no rádio era ela também
A novela das oito era aquela menina
Era ela a rainha da sala de aula e da hora do recreio
A felicidade tinha o nome dela
E a tristeza também.
Eu era dela
E ela era minha, mesmo sem ser.
E assim foi a ano inteiro
E depois disso, nunca mais a vi.
E como aquele ano
Muitos outros se passaram
Paixões vieram e se foram
Montadas num cavalo alado.
Num cantinho profundo do meu coração
Repousa incólume o projétil daquele tiro à queima-roupa
De vez em quando sinto uma pontada...