Companheiros

Na caixa estava tudo que juntamos de uma vida inteira,

Tão pouco parecia agora.

Tantas lembranças povoavam minha mente.

As danças nos fins de semana, os risos altos com ele de uma história engraçada,

Os filminhos no sofá em dias frios com pipoca, guaraná e coberto,

O desespero do primeiro filho, aliás uma menina linda e generosa

As broncas nos filhos, as brigas que tivemos, as birras um do outro

O sabor do seu tempero, a delicadeza do seu toque em meu corpo,

Nossas noites de amor,

Nossos tantos segredos, erros guardados, histórias não contadas para não magoar o outro,

Nossos primeiros netos, correndo pelos corredores da casa, quebrando nossas coisas, nos enchendo de orgulho,

Nossas doenças, nossos cuidados um com o outro,

Não fomos perfeitos, não fomos fiéis em nossos laços matrimonias,

Mas fomos inteiramente companheiros um do outro,

Inteiramente entregues ao companheirismo e ao cuidado um do outro

Quando fui envelhecendo, o espelho me mostrando tudo caindo,

Você me mostrou o meu valor, completamente desconectado da forma,

Nascente constante do que eu sempre fui e fiz pelos outros,

Quando você ficou careca aprendi a mar carecas,

Quando envelheci, aprendeste a amar velhinhas,

Quando o sexo entre nós acabou, com o envelhecimento de tudo em nós,

Já éramos companheiros e maduros o bastante para ficarmos bem sem eles.

O dia em que te enterrei foi o pior das nossas vidas,

Acabava ali um universo longo, mas finito, de dois humanos em um, em uma só vida,

Acabava ali o sentido da minha jornada e tive que me reinventar na velhice

Aprender a viver sem você, a dar outro sentido e outros rumos à vida

A procurar outras pessoas para cuidar, já que você não estava mais aqui

E nossos filhos e netos não precisavam mais de mim,

Sofri, chorei praguejei você ter ido antes de mim, ter ido sem mim,

Mas estava aqui ainda, então me levantei e me reinventei por nós, por você mais que por mim

Agora, velhinha, cansada, esperando a morte me levar para ti, já sem condições de cuidar de mim,

Cuidei tanto dos outros, agora estou fechando nossa casa, nossas pareces, nossos espaços,

Me desfaço dele com muito esforço e dor,

Apenas com o consolo de que será ocupado por outro casal, começando a vida, como nós ´há muito tempo,

Me consola o vislumbre da ideia de que essas paredes, esta casa presenciará mais uma jornada de amor

Aguardei tudo de nós naquela caixa velha de madeira maciça, que me deste com meu nome gravado nela, aquele bauzinho, uma relíquia na época,

Nossas coisas cabem nela, pequena, pouco espaço, não tempos muito além de fotos e outras coisinhas,

Mas vamos deixando de presente para a vida, nossa jornada,

Nossos filhos e netos, as pessoas que influenciamos ao longo do caminho

E uma bela história de companheirismo,

Hoje, me reinvento de novo, dessa vez me mudando para outra vida, onde só habitam idosos,

Jovens alegres e outras rabugentas e insensíveis à vida vão cuidar de mim enquanto espero,

Enquanto espero minha doce morte para contigo morar.

Marta Almeida: 14/09/2019