O estalajadeiro

Diante da gente que chega

impregnada de morrinha,

pelo, fome e desgraça,

o novo estalajadeiro põe de lado

o seu arco e a sua flecha.

Acende as lamparinas no balcão ensebado...

Outras já estão acesas

rodeando a estalagem sombria.

O ambiente interno

(suspiros, lamentos, gargalhadas, piadas...)

espanta o som do vento lá fora.

Um gordo barbudo,

de andrajos,

vestido de lágrimas,

cheirando a suor de cavalo,

canta com voz de tenor.

A estalagem anda cheia,

mesmo em tempos de crise.

Fica esta construção crepitando

ao pé de seculares árvores;

ao redor: chão laranja com pinceladas de marrom,

passo do gato, da lebre, do carrasco.

É bonito o outono!

Passa gato, passa lebre, passa carrasco...

É sempre outono.

Quem vem lá? – pergunta o estalajadeiro

a cada um que empurra e passa pela porta.

A sorte!

Entre, não precisa pagar nada.

A morte!

Saia, e leve a sua foice.

O Norte!

Ora, tão longe de casa!

Acaso veio fazer rima?

O lenhador!

Em boa hora! Dê um jeito no fogo.

O caçador!

Que trazes contigo, valente caçador?

– A lebre que corria lá fora;

o gato e o carrasco me escaparam.

Toc, toc, toc...

Ora, quem está atrás da porta?

Por que não fazes como os outros?

Empurra! Entra!

Não! Assim não faço!

Antes de entrar conto uma história.

Que seja! Mas responda: quem vem lá?

Você é quem dirá o meu nome ao final,

nobre estalajadeiro.

“Ainda que eu me esprema

entre muros crespos,

navalhas da carne,

limpeza da alma,

e rasteje pelo chão quente,

das ruas ensolaradas,

nas cidades caóticas,

(lembranças atrozes),

pontas de lança...

Ainda que eu espere o tempo,

o senhor Tempo

com seu engano atraente,

sua dúvida constante,

suas frases preconcebidas,

feitas,

indecifráveis,

e o tempo das belas rosas vermelhas

com suas roupas de veludo,

ainda...

hora, não-hora...

Ainda que o paraíso na terra se anuncie,

para em seguida se tornar um fardo,

e que as casas feias, entulhadas,

se avolumem à minha frente,

na frente dos homens pesados e lentos do trilho...

Ainda que, no sonho, os cabelos

estejam cortados,

as palavras sejam cruéis,

o álcool se alastre com bravura

no corpo ausente,

na confusão das enseadas,

na manhã da cama de cercas e perguntas...”

Travessias, travessias, travessias...

“Ainda que não existam regras estabelecidas,

e que o empenho brutal,

a doação total,

o olhar sincero,

as promessas fundas,

as promissórias assinadas,

ainda que nada disso garanta nada,

ainda assim...

Ainda assim eu existirei,

tão forte e convicto

quanto o frufru dos vestidos finos

das moças elegantes e ricas.

Mesmo frente ao frio enorme

do verão de março,

mesmo frente às pesadas nuvens que rodeiam

o dia claro e limpo,

mesmo diante da natureza dissimulada do homem;

sim, mesmo diante de tudo eu sempre existirei.”

Em nome de Deus! – exclama o estalajadeiro emocionado.

E o que fazes aqui, AMOR,

nesse lugar ermo e triste?

Nunca te encontrei por estas bandas.

Aliás, estás, de fato, sumido do mundo.

Ora, ora, estalajadeiro,

esqueceu que estou em todo lugar?!

Estou no gato, na lebre, no carrasco...

Basta seguir os sinais.

Vamos, retome o teu arco e a tua flecha, nobre cupido;

pois quanto a mim vim ser.

Borboletas azuis
Enviado por Borboletas azuis em 18/05/2020
Reeditado em 14/11/2020
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