Um século

abri a página do jornal pra saber onde esteve meu eu

na noite passada

na noite anterior

na noite em que se perderam minhas pernas

inútil procurar o meu eu sem saber se as portas da minha cozinha estão trancadas, com rachaduras profundas e o cheiro de gás escapa como um menino escapa da morte ao nascer

os jornais estão perdidos

as lavouras florescem cabeças penduradas em armas

as nações conclamam a paz para matar e morrer de alegria

as pinturas são roubadas da África

e a esperança relincha na cara do velho mundo

um século é o tempo para me encontrar

encontrar a história

encontrar as barbáries da mutilação do meu rosto

encontrar as noivas escondidas nas prostitutas

encontrar os devassos que há dentro do Papa que existe em nós

encontrar as depressões que só me fazem forte depois de litros de absinto mergulhado na minha escuridão e veia...

um século ainda virá para se compor as mais belas obras incompletas

um século ainda virá para nos defender do império brutal que nasce da nossa própria dominação natural

da fraqueza

da dor

das inutilidades modernas que só me afogam como um grande mar de leite fervendo

onde meu corpo é mergulhado de mansinho

e gozo de dor

luxúria

vertigem

insólitos momentos de lucidez dentro do século da mimha alma

dentro do vácuo

dentro do seu suicídio comum e social...

um século é tempo demais para minha consagração

é tempo demais para sua morte se tornar um poema

é tempo demais para as explicações metafísicas do amor letal

sou um século do meu tempo imperfeito

Valdson Tolentino Filho
Enviado por Valdson Tolentino Filho em 12/11/2005
Reeditado em 13/11/2005
Código do texto: T70613