Tratativas

Para compor um tratado de passarinhos

É preciso por primeiro que haja um rio com árvores

e palmeiras nas margens.

E dentro dos quintais das casas que haja pelo menos

goiabeiras.

E que haja por perto brejos e iguarias de brejos.

.

( Manoel de Barros)

Tratativas

Fiz alguns tratados amorosos

ao longo da vida

sem observar a fertilidade do solo

sem me prender às coisas tidas como desimportantes

Nada de perguntar sobre as amorosidades passadas

sobre infâncias perdidas no tempo

e como viam as nuvens do céu.

Não falei de passarinhos

nem de libélulas

se eram variadas

e coloridas

Nunca me peguei proseando com meu amor

sobre cutucar ovos de lagartixas

nas frestas do muro que separava a nossa casa da do vizinho

e quanto me entretinha nessa tarefa

sem jamais pensar

que estava destruindo as lagartixinhas,

só me alegrava em ver algum serzinho

saindo,de olhinhos arregalados

assustadinho.

Maldade nenhuma,

só vontade de ver outras formas de vida

no meu quintal,

que também era maior que o mundo.

Não me lembro de ter ouvido de nenhum namorado

um suspiro de saudade

das enxurradas caudalosas, que transbordavam de um rio

vizinho, temido e querido por seus mistérios

e varriam tudo o que encontravam pela frente.

E eu?

juntamente com outras crianças,

entrava na água quando amainava um pouco

e não oferecia mais perigo

a não ser algumas mazelas infantis.

Os meus amores tinham objetividade em demasia,

careciam das minudências

de uma perscrutação silenciosa,

do tempo em que andar descalço

era ser livre mais do que ser pobre,

e o pão posto à mesa dava pra todos

sem direito a cara feia

ou a crença do "comida pouca meu pirão primeiro".

Nos meus tratados amorosos,

em nenhum deles

fiz questão de exigir

que no nosso quintal houvesse pelo menos goiabeiras,

de goiabas brancas ou vermelhas,

para filosofar sobre os bichinhos delas

com despudor e respeito,

além de se deliciar a cada mordida

Faltou principalmente um tratado de passarinhos,

com cláusulas que garantissem o plantio de árvores de todos os tipos,

altaneiras ou arbustivas,frutíferas ou sombreadoras,

que virassem ninhais na primavera.

Acho que a ausência desses tratados (meus)

altamente existenciais,

comprometeram

a capacidade de um amor

vicejar depois de cada hibernação.

Quem teve um quintal de adobe

tem riqueza invisível guardada no santuário das lembranças.

O olhar desde priscas eras precisa fazer acrobacias na arte de ver,

praticar a solitude

e nela encontrar quem aprende com os silêncios

e regozijar a dois,a três ...sem virar multidão.

Amarília T Couto