Quadros de guardar:

1 – A harpa, o arco e a flecha: (Soneto)

(À Glorinha)

No mar, as flechas se lançam rumo às estações desabrigadas

O vento que sopra ameno exalta meninos de luz a morar em tetos de sapê

Eles não falam, sorriem e rabiscam palavras céu da imaginação:

- todas as casas do medo são de barro e a ausência é literária, meu bem.

A harpa que sustentam é a mesma que atinge o coração distraído

Trajados de face rosada e tecido azul clarinho, se impõem

E as sombras nas paredes da memória são desatadas dos pés

Naufragando dores taciturnas: erguem o arco, dispersam as flechas.

Arrebentam o baú dos sonhos numa prece em verde cacto

Neles, águas acumuladas satisfazem os desertos invasores

E revela-se a escassez dos amores perdidos, diante os amores possíveis.

Em clarão de luar, os vôos acompanham as marés a procura de um porto

No barco que abriga espaços a serem preenchidos de aurora

Estilhaçam a solidão e eles se fazem em retirada quando navega-se amor.

Léa Ferro. 14-04-2008.

2 - A pequena bailarina: (Soneto)

De olhos deslumbrados ela caminha pela cidade desconhecida

Sapatilhas nas mãos e no peito tremor da ansiedade

Ela para diante o cinema que anuncia noites de magia

O prédio alto lhe parece com as montanhas da sua vida.

Ligeiramente sorri e a timidez se faz presente

De face corada afunda a cabeça no vestido de sua mãe

A procura de conforto e do silêncio que a proteja...

Sobriedade é estar no palco, entorpecida de dança.

Como pluma diante a brisa, em passos simétricos

A pequena bailarina se torna um pássaro itinerante

Que abriga os domingos amanhecidos das canções.

Em vestido cor de areia e audácia que lhe guarda as mãos

Ela desliza e seu olhar é de quem fabrica límpidos sonhos

Naquele momento, ela sabe, que será eternamente criança.

Léa Ferro. 14-04-2008.

3 - Quadros de guardar nos quadros de não - guardar:

A paisagem que sustenta os retratos da saudade

É de um querer do olhar por todas as manhãs

A rede hasteada, o café fumegante, o mar selvagem...

De expressão sonolenta e manhosa, despertavam as flores

As mãos que deslizavam em meu rosto pareciam abençoar

E o mundo deixava de existir por tantos imensos segundos.

Eu pintava versos coloridos no silêncio do beijo preguiçoso

Eu saudava o sol, inda quando caminhava atrás das nuvens

Eu equilibrava vôos até nas tempestades invernais.

Nos quadros de guardar, guardo o que me será eterno: amor.

Fecho os olhos diante o livro que traz palavras sedutoras

Por que todas as noites o orvalho desenha nas folhas o teu sorriso.

A lembrança faz crescer o meu amor em cada gesto clássico

E é preciso que os mares se separem para outros mares nascerem

Se não sobrevivo às tentações é porque meu sangue se misturou ao teu.

O retrato que descansa no móvel no canto da sala escura

É feito da mesma madeira que cravou o teu nome em mim

Distraída, eu não soube ler com exatidão a tua eternidade.

Todo o amor que mora em mim está agora numa canoa pequena

Há tantos mares em tantos outros céus que podem me navegar

Mas a vida se faz em castigo por que tua presença é ausente e infinita.

Léa Ferro. 15-04-2008.

4 – O circo: (Soneto)

Desde que Maria se foi eu perdi o meu jeito de caminhar

Antes eu era suave, agora os equilíbrios me confundem

Vivo na corda bamba entre os arenosos precipícios de areia

E olha que eu nem sou, nem nunca fui trapezista.

Eu deveria ter aprendido com a moça dos olhos morenos

Ela tinha o nome de Iemanjá e os cabelos num penteado brilhante

Equilibrava-se tão bem e elegantemente maquiada nos sorria

Eu ficava lá embaixo admirando e me perdia em aplausos.

Eu gostava de quando ela saltava e voltava para a corda

Assustava-me todas às vezes, achando que a moça ia despencar

Mas ela tinha uma certeza maior, enfim, era trapezista.

Não sei por que não aprendi a caminhar em cordas

Logo eu que não tinha medo de altura e fui menina de circo

Agora que Maria se foi vivo pendurada... Escalando sonhos.

Léa Ferro. 15-04-2008.

5 - Primavera incandescente:

(Para Marlene: por todas as horas.)

Não sei em que momento o amor chegou a minha vida

Eu me recordo estar sentada na calçada, em sol poente

Tuas mãos se firmaram na minha e passeamos por longas horas.

Eu te vi derrubando os muros dos meus dias e nada fiz para evitar

As ruas estavam desertas e a tua voz veio como bálsamo me abraçar

Caminhávamos pela praia nas tardes de meu outono dolorido.

As folhas ao chão eram substituídas por tulipas, borboletas e colibris...

Mas eu não percebia que teus passos marcavam a areia deserta

Porque tu me carregavas no colo e curavas as feridas.

Toda vez que eu chorava alguma palavra tua me trazia conforto

Quando eu amargava em dor os teus olhos eram calmos e tu sorrias

Fazendo meu mundo ter tons de amarelo e azul claro, tu dizias:

- Eu preciso de ti.

Das suavidades absorvi o perfume mais puro em plena estação

Quando o trem de ferro partiu, eu havia desembarcado sem me dar conta

Acontece que as minhas dores também partiram naquele trem.

Eu me vi tantas vezes perdida remando em rios selvagens

Em cada lugar a marca do teu sapato estava junto ao meu

Eu não sei qual momento foi maior se todos são ternamente vivos.

Há uma fotografia sem data onde o mar, nos desenha

E nenhuma onda se compara ao embalar das tuas mãos sobre meu pesar

Foi neste dia que tu passaste a morar em mim para sempre.

Talvez eu não te fale de amor, por que palavras e ventos são iguais

Mas as vozes em minha cabeça me fazem lembrar tuas canções

E todas as coisas bonitas que eu vejo me levam de encontro aos olhos teus.

Léa Ferro. 18-04-2008.

6 - A casa de farinha:

As frestas envelhecidas permitem o sol matreiro iluminar

Enquanto as mãos calejadas manuseiam com cuidado a roda

A chapa de cobre apóia a caneca de café caiçara

E a casa de barro é invadida pelo aroma do amanhecer.

A casa de farinha quebra os silêncios:

É o dia que começa mais uma vez na praia dos pescadores

Onde o mar se agita, as canoas remansam,

O homem trabalha.

Vez ou outra ouve a melodia

E a vontade de estar no mar, lhe trai.

A roda gira manualmente e os braços exercem a força das águas

A mandioca moída cai na gamela talhada nos dissabores dos sonhos

O forno se prepara para receber a farinha.

O dia caminha, a tarde se aconchega, a noite se anuncia...

Das lembranças voam borboletas e o teto salta dentro do peito

O sapê que protege do sol árduo e da chuva forte anoitece.

O homem enrola o fumo na palha

Num trago em quietude, abre as portas da saudade

Os olhos que guardam lágrimas miram a lua,

Seu rosto, marcado dos anos, se acende na escuridão.

Não tarda a noite em repouso

Nem o mar selvagem, a amansar-se diante seus pés.

A casa de farinha o alimenta quando a pesca é deserta das esperanças

Léa Ferro. 18-04-2008

7 - A onda e o mar:

De repente cismei que sou poeta

E diante as águas voam versos dos meus olhos

A tela se descortina ampla e bela sob fios de sol

Que constrói sombreado certo em cores límpidas.

As mãos traçam curvas pelo ar em plena gestação

O verbo salta dos dedos para nascer na areia branca

E as pedras que moldam a imagem amanhecida

Parecem-me dizer que sou vã mortal perante a grandeza

Do mar que tanto se agita como se acalma, em mim.

Sons embriagam a claridade dos meus sonhos

No templo submerso de marés que embalam rimas

A onda e o mar que me beijam

Tanto me alegram que de mim já nem sei sem mar.

A onda e o mar me abraçam e me dão alma

O espaço em dobras faz as asas em par pelo céu

Onde sou réu, deste amor imenso, ao mar.

Léa Ferro. 24-04-2008.

Léa Ferro
Enviado por Léa Ferro em 29/04/2008
Reeditado em 29/04/2008
Código do texto: T967898
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.