Sobre o Ensaio sobre a Cegueira

"Estou cego" - bradou um alguém.

Um a um, dois a dois

A cada dia chegando

Com a força dos olhos faltando

A confusão de corpos sem nomes

Mergulhados em treva infame:

A cegueira não poupou o homem.

Segregados pela diferença

Discriminados, da incerteza reféns

Isolados tal qual parte de vil crença

De quem nem conhece doença

Ou a cura que dela provém.

Mergulhados na clara escuridão da alma

Aos poucos o espírito revela

Que, como os passos vacilantes,

A lucidez em momento discrepante

Mostra que a falta de pão garante

O rompimento entre homem e fera:

Onde um começa e a outra termina?

Quem o vil destino a ganhar determina?

Tateia-se com as mãos o assombro

A garantia de ser dono de si

Lutando face a face, ombro a ombro

(como ratos engaiolados no porão)

Pela posse, luxúria e ganância.

E o egoísmo a transformar o varão.

Vem a guerra sem trégua

Pela sobrevivência sem dignidade

Que sobrepujou a humana vontade

A solidão chega galopante

A fome subsidia a loucura

A loucura fomenta o ódio

O ódio traz praga e morte

E o esquecimento da Sorte

Que é ser pleno e irmão:

A ânsia pelo poder

Condena o fraco a sofrer.

A esperança se esvai com o fato

De que o que unificaria os homens

Pela mesma ética condição

É o que mata e tolhe da alma a visão:

A cegueira moral.

O homem tal qual animal.

Caos. Ou Destino.

“Se pode olhar, veja. Se pode ver, repara”. (José Saramago)