FRIDA KAHLO

FRIDA KAHLO

(Para ALINE VEIGA,

em agradecimento pelas imagens enviadas.)

A CRIAÇÃO DE FRIDA I (8 ABR 11)

É inquietante a Criação de Frida Kahlo.

Reclina-se o Adão em nu frontal,

com o pênis encolhido e natural,

uma haste no umbigo, qual um falo.

Na cabeça uma coroa, único abalo

dessa sua concepção tradicional.

É um Rei da Criação individual,

mesmo sendo de fato só um vassalo.

Enquanto Eva, embora esteja nua

e deitada em uma concha, em indolente

e afrodisíaca postura de atração,

tem a vagina escondida e, em meia-lua,

seus cabelos, como relva transparente,

até dos seios lhe protegem a visão.

A CRIAÇÃO DE FRIDA II

Claro, ela é fêmea e talvez essa inversão

de convenções da habitual pictografia

se possam atribuir-lhe à fantasia:

está no corpo masculino a sedução!...

Mas por que o girassol da compulsão

nasce do ventre masculino que o nutria,

enquanto de Eva claramente nos espia

o seu umbigo, ao contrário do de Adão?

O Sol é um óvulo em plena floração,

o feto chora ao se tornar criança

e a mitose é mostrada claramente.

Do lado oposto se vê a fecundação

de outro óvulo, circundado em esperança

por esse esperma que morrerá rapidamente.

A CRIAÇÃO DE FRIDA III

É muito estranha essa psicofagia:

dois esqueletos trazem protegido

esse lugar em que o sexo perdido

lascivo lhes brotara em outro dia.

Mas o arcabouço que sob Eva jazia

de humano crânio se encontra desprovido.

A seus pés está o demônio e é acolhido

pelos dedos que acarinham o que devia

ser a caveira de uma mulher humana,

mas é um crânio de três órbitas, sem boca,

sem narinas e sem queixo, enquanto touca

parece projetar-se da craniana

calota, em direção aos quatro dedos,

que se recurvam no mistério dos segredos.

A CRIAÇÃO DE FRIDA IV

Mostra arquétipos de fato incalculáveis,

de tantas religiões o simbolismo;

à esquerda se descreve o paganismo

mexicano, em suas deidades incontáveis.

À direita, há atributos mais maleáveis,

das primeiras religiões ao Cristianismo.

A lua de Astarteia, em saudosismo,

é a auréola dessa Virgem. Imponderáveis

são esses olhos com que a Madona espia.

Ali estão Febo e Júpiter. Após a esquila,

a face glabra desse bezerro de ouro...

Zoroastro de olho azul, que nos vigia,

de Jeová um tetragrama e nos cintila,

sob o triângulo, o Trimurti, sem desdouro.

A CRIAÇÃO DE FRIDA V

Mas abaixo dos símbolos da morte,

estão figuras de maior humanidade,

da memória guardadas na inverdade,

agigantadas para hercúleo porte.

Vemos muitas aqui, de toda a sorte,

Marx e Trotsky, o Stalin da maldade,

Nefertiti, Buddha e o Gandhi da bondade,

Genghis Khan e Pasteur, que talho forte

desferiu nas doenças que até então

nos ceifavam. Laotsé, Jesus e Napoleão,

Amenhotep, Sócrates, Lutero...

César e Hitler, o Maomé severo

e tantos outros, que em sua geração,

se souberam impor ao mundo fero.

A CRIAÇÃO DE FRIDA VI

Mais embaixo estamos nós, acompanhados

por duas árvores secas, proteção

bem pouco acolhedora à gestação,

nessa imensa multidão dos condenados.

E há touceiras de papiros inclinados

sobre as águas do Nilo e, em flutuação,

aquele cesto em que Moisés à execução

fugiu, a que os meninos eram destinados.

Mas tudo isso é apenas descrição,

de modo algum será a interpretação

para essa fonte de meu inquietamento.

Pois cada raio do Sol é braço e mão,

presidindo a esse estranho julgamento

da humanidade em sua final avaliação.

CAMA FLUTUANTE I (9 abr 11)

Que existem outras explicações bem sei,

provavelmente mais certas do que a minha.

Mas para versos só me servem de bainha

essas quimeras que eu mesmo fantasiei.

Conheço o fluxo que de lágrimas chorei,

lambi o sal das que verteu minha rainha.

Mas de todo o pranto humano a ladainha

eu imagino, mas não vivenciarei...

Deste modo, ao olhar "Cama Flutuante",

não me interessa o que Frida quis dizer,

nem os motivos por que o quadro pintou.

Somente sei do sonho delirante,

que em mim gerou e logo fez crescer

o som do sino que em minhalma badalou.

CAMA FLUTUANTE II

A seu redor há fetos incompletos;

pélvis rachada, pois sofrera um acidente,

cujas sequelas experimentou frequente,

nessa sua vida de incompletos fetos.

Sem proteção de deuses ou de tetos,

ela flutua em posição jacente,

bem definido o púbis redolente,

como o horizonte de estranhos objetos.

Por mais onírica que pareça essa pintura,

só representa a sua vivência pura,

transmutada em catarse emocional,

enquanto os vultos que essa água espelha

não têm correspondência e só de esguelha,

lhes consigo imaginar o original.

CAMA FLUTUANTE III

E vejo a forma com que se revelou

a Frida Kahlo, por meio da pintura.

Do seu destino enfrentando a força escura,

que em livre-arbítrio plenamente dominou.

Essa cama em que flutua revelou

o amniótico despontar dessa lisura.

Amarelas essas águas, chama pura

de quanto a vida ingrata lhe mostrou.

E esses adornos que a rodeiam, afinal,

cada um preso por cordão umbilical,

são fios de sangue por ela derramados.

São avatares que desencarnou

do inconsciente que lhe despertou,

como filhos que jamais foram gerados.

AS PUNHALADAS DE FRIDA I (10 abr 11)

Em toda a obra da grande Frida Kahlo

se possa achar talvez mais inquietante

esta figura do homem triunfante,

em sua tradicional pose de galo...

Sobre o cadáver ainda palpitante

de sua mulher, após apunhalá-lo,

usada a adaga no lugar do falo,

seu sangue a observar expectante...

Eu, por enquanto, não matei ninguém,

por mais que seja eu mesmo passional:

é de forma diferente que me insiro.

Mas reconheço que fazer amor com quem

derrama ainda seu fluxo menstrual,

até me enquadra em certo tipo de vampiro...

AS PUNHALADAS DE FRIDA II

Que tudo quanto é humano me pertence

já repeti mil vezes: é o lema de Aretino.

Portanto, esse punhal de bico fino,

por mais que eu mesmo de oposta forma pense,

também é meu e a repugnância vence.

O livre-arbítrio determina meu destino,

mas sou o cadáver e quem lhe toca o sino

e não posso impedir que em mim se adense

todo o bem e todo o mal da humanidade,

que, em parte, meu arbítrio determinam.

E desse modo, eu sinto as punhaladas

e é meu pulso que tem ferocidade

e são meus dedos que o pincel empinam

contra a moldura as manchas encarnadas.

AS PUNHALADAS DE FRIDA III

Diz a faixa: "São apenas uns furinhos..."

Nela se espelha a condição humana.

A pomba branca à negra pomba irmana:

são necessários esses dois biquinhos

para que o dístico flutue. São mesquinhos,

sem dúvida, os dizeres que proclama,

mas é uma faixa de presépio insana.

O "Glória a Deus nas Alturas" dos anjinhos

também flutua sobre a manjedoura

e São José vigia sobre a vida...

Este é o vigia da morte e seu destino

a condição humana não desdoura.

Só uma pergunta me leva de vencida:

quem lavará a camisa do assassino...?

AMA-DE-LEITE I (10 abr 11)

A ama-de-leite é índia e foi pintada

num tom entre castanho e terracota.

Mas sua cabeça, por razão ignota,

é negra contra o fundo acinzentado.

Ela preside de Frida Kahlo o fado:

o leite de suas mamas grosso brota,

ela alimenta sempre e não se esgota,

trata a criança como um fruto desejado.

Porém Frida não quer que haja incerteza

sobre essa infanta mole nos seus braços:

é seu rosto de adulta o desenhado,

contra essa teta da própria Natureza,

que nos sustenta a todos em abraços,

até que em cinza seja o leite derramado.

AMA-DE-LEITE II

A ama-de-leite nos mostra o rosto preto,

como preta será a terra do país.

Essa terra que de todos é a nutriz,

tendo as estrelas apenas por seu teto.

Seu rosto é indiferente e sem afeto

e a posição dessa criança diz

que dá plena confiança ao chafariz

de sangue branco e de sabor dileto.

Tudo ao redor é verde, rododendros

de folhas largas que para fraldas servem;

ou alfaces gigantescas, de alimento;

ou meiga brisa de grossos filodendros;

ou um berço de caniços que se enervem

para afastar a morte em tal momento.

AMA-DE-LEITE III

A camisola de Frida é imaculada,

mais branca do que o leite que lhe escorre

no raio-X da mama que lhe forre

o ventre e toda a carne encarquilhada.

Robusta é sua nutriz, mas engelhada

essa criança adulta que socorre.

Toda criança mais cedo ou tarde morre,

voltando para a terra ou adultizada.

Mas a grande nutriz de largos ombros,

negros cabelos contra o céu de assombros,

nunca morreu, nem morrerá jamais.

De certo modo, a vida é devolvida

pelo sopro dos lábios da nutrida,

que o leite doce envolve nos seus sais.

AMA DE LEITE IV

E a Natureza é ama-de-leite dura,

que enquanto precisarmos amamenta,

como ao restante da vida ela alimenta,

mas sem favor e sem real ternura.

A ama-de-leite que a nutrir perdura

precisa alimentar-se ricamente,

com a cinza do céu e a verdolente

clorofila da folha verde e pura.

Porém prepara para nós cálido forno:

a Natureza é terra e é mineral.

É bem paciente na geração da vida,

contudo, gera a morte no retorno

de quanto é animal e vegetal,

pois só nos nutre porque espera ser nutrida.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 22/05/2011
Código do texto: T2985257
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