A Estagiária

A ESTAGIÁRIA
Miguel Carqueija


Eu sou a estagiária,
sou pau-para-toda-a-obra;
ajudo a escriturária
e faço o serviço que sobra.
Pode deixar, eu sou cobra...

Tiro cópia, levo e trago,
sou com todos prestativa;
me fazem até muito afago,
eu tento ser bem ativa.
Não gasto a minha saliva...

E atendo o telefone,
e uso o computador;
não fico no “smartphone”,
meu trabalho tem valor
pois eu faço com amor!


O homem pensa que manda
mas a mulher é que é a tal;
pra cumprir qualquer demanda
trabalho de igual para igual!
Procuro não fazer mal...

É claro, isto é passageiro,
estágio logo termina;
um emprego verdadeiro
é o que almeja esta menina!
Quero futuro e não sina...

E para isso eu estudo
e ganho o meu dinheirinho;
e como Deus é meu tudo
faço tudo com carinho
mesmo ganhando pouquinho!

E o Nelson Rodrigues diz,
tenho sujo o calcanhar:
mas vê onde bota o nariz,
não quer o seu próprio olhar?
Favor não incomodar...

Mas eu sou bem-humorada
e aqui todos me respeitam,
gosto de ser estimada,
comigo todos se ajeitam,
por isso sempre me aceitam.



Eu conheço o meu lugar,
pois não tenho autoridade;
um dia isto vai mudar,
com um emprego de verdade,
é trabalhar com vontade...

Nunca deixo de rezar
pra Virgem me proteger,
pra Jesus me abençoar,
e São José me valer;
Deus comigo eu quero ter...

No fundo eu até carrego
nas costas esse escritório,
ao trabalho eu meu entrego
e o meu talento é notório!
Sabe disso o seu Libório...

Sim, eu sei fazer planilha,
usar esperta o excel,
e fica uma maravilha,
diz a Doutora Mabel;
melhor só mesmo no Céu!

Sabem, eu me chamo Ana
porém sou tão otimista
que me chamam Poliana,
uma estagiária-artista!
Todos me põem na lista...

Gente, estágio é poesia
mesmo arquivando papel:
aprendi com a mãe e a tia
a ser doce como mel
fazendo da Terra um Céu...

Eu não brigo com ninguém,
não trabalho fofocando,
pois sou pessoa do bem,
me realizo ajudando
tendo Jesus no comando!





(Nelson Rodrigues, grande cronista e teatrólogo brasileiro, de estilo extravagante, em suas crônicas colocava personagens bizarros, como o Sobrenatural de Almeida, o Palhares (apelidado "o canalha" porque não respeitava nem cunhada, e a "estagiária do calcanhar sujo", alusão ao constante uso de sandálias baixas)

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