Trêmulo Verso

Descendente duas vezes de escravos

Filho de mãe solteira

Não seria a desgraça derradeira

Queriam me cravar outros cravos

A começar pela educação

Que só aos dezesseis comecei

Onde a primeira letra interpretei

Foi minha tábua de salvação

Sofri pela herança da cor

E até hoje sofro de forma direta

Conta tanta indireta

Não há nessa esfera paz e amor

Tive de sobreviver a violência

Que tantos adolescentes ceifou

Vezes, ela, ainda me beijou

Instinto de sobrevivência

É difícil falar da fome

Que passei naquele torrão

Meu rico e dos pobres o Maranhão

Comendo lixo salvei meu nome

Lar doce lar, uma tapera

Uma casa feita de barro e palha

Que meu sono ainda atrapalha

Quase cai em cima de nós, pudera

Roupas, sim, roupas eram trapos

Sim, minha mãe assim classificava

Quando as lavava

- trás pra lavar menino, teus trapôs

Criança, criança tem brinquedo

Meus brinquedos eram latas

Do monturo em meio às baratas

Para brincar não há segredo

Ainda bem que nossa saúde

Foi um presente de Deus

Até aquele bendito e maldito adeus

Lutei até onde eu pude

Não existem rosas na nossa história

Meus irmãos sucumbiram ao delírio

Dificilmente, eu sigo no trilho

Como apagar tanta desgraça da memória?

Tá tudo tão fresco na mente

Lembro das lições de vida

Da minha finada mãe querida

Em meio a tanta pobreza, vivia sorridente

Nos ensinou da vida, o fundamental

O respeito, o trabalho e a igualdade

- Não tem serviço só de mulher, vaidade

Dizia minha mãe, o direito é igual

Nos ensinou o significado da união

Sem isso, não teríamos sobrevivido

Tanta sabedoria, só de ouvido

Mulher de grande coração

Uma vez perdi o dinheiro, que já não tinha

falei pra ela, esperando apanhar

Disse: não perdeu a vida, por ter o que dar

Era pra comprar farinha e sardinha

Ela fugiu, pra recriar sua história em outro mundo

Guardou tanta coisa só pra si

Mas, ninguém diria, ao vela sorri

Ninguém conseguiu puxa-lá do fundo

Saímos todos pela metade

Conviver com tudo isso armazenado

Torna qualquer ser, um condenado

Ainda luto por igualdade

Sobrevivi, pra ver outro universo

Minha alma não tá em paz

Porém, fiz e faço tudo que sou capaz

Fiz, esse trêmulo verso