A linha do trem

Meu pai era um homem de poucos afetos.

Mas, de quando em vez, passava a mão na cabeça da gente,

como quem diz: “estou aqui”.

Dia perfeito era quando vinha do trabalho com duas barras de chocolate Diamante Negro... E ficava olhando a gente comer com uma ternura alta,

impossível de se alcançar com palavras.

Era a gente adoecer e ele perdia o rumo, endoidava, ficava sem direção.

Tinha um jeito diferente de conduzir as filhas no meio da rua.

Segurava as crias era pela nuca,

com uma mão que trazia a medida exata entre a força e a delicadeza.

Mão que eu passo a vida procurando em tudo quanto é homem e, quando achar...

Aí eu juro fidelidade, caso na igreja de véu, grinalda e buquê de flor de laranjeira.

Era possessivo até não poder mais, o meu pai.

E quando diziam: “Pedro, Pedro... Essas meninas vão dar trabalho...”

Ele respondia, fora de si:

“Na minha casa cabra-macho não vai passar das nove da noite”

(era o jeito dele dizer que, namoro, só se fosse à moda do interior).

Certa feita, confessou à vizinha, dona Dilí:

“Se acontecer alguma coisa com uma das meninas, eu morro.

Me mato. Me atiro na linha do trem e fico esperando ele vir”.

Mas não foi o trem que matou meu pai, não...

Pedro morreu foi de rixa antiga – fervida sob o sol forte do sertão.

Nunca, nos 13 anos de vida em que passei ao seu lado,

meu pai me disse um “Eu te amo”

(assim, com esses termos de Aurélio e de Houaiss).

Nem precisou, também.

Pra mim, já basta a imagem forte do trem de ferro vindo

e o pai esperando a morte, solitário, deitado na linha.

Mestre Rosa já dizia em seu Grande Sertão: Veredas:

“Viver é muito perigoso”.

Ao que eu acrescento, com sua licença:

“E está para além dos dicionários”.

Gói,

São Paulo

19/09/05

Goimar Dantas
Enviado por Goimar Dantas em 14/02/2007
Código do texto: T381028