do sabor amargo das manhãs
toca o despertador eu não levanto
não me viro e não abro os olhos enquanto dói
e tem essa luz inconveniente que me desprega do sonho a fórceps e não há nada que eu possa fazer
e tem essa dor que começa dentro e escorre vermelha e incandescente pele umbigo carne unhas
tateio o xarope que vó nininha fez do fio do cabelo dela
- infalível, minha filha, pode confiar.
tomo minha dose diária de força
e posso levantar.
passa uma semana, duas, cinco
- a dose cê pode diminuir com o tempo, minha filha. você vai ver. vai ficar boa logo.
mas todo dia que a luz inconveniente chega com seu fórceps eu sinto a dor vermelha e incandescente fazer uma fenda maior
e minto:
- é sim, vó, já tô ficando boa.
minto minto minto minto até que acredito
sigo os dias beirando a alegria banal dos ignorantes, a sanidade medíocre dos normais
até que encontro com ela.
e seu sorriso é chuva que enlameia o chão de barro do meu muro de proteção
que dissolve o frágil envoltório da minha mentira de mau gosto
e seu abraço é vendaval que arranca as frágeis dobradiças das minhas portas de metal oxidado e me arremessa de cara contra as suas paredes postiças
e aquela força vai pro quinto dos infernos.
eu deito, não durmo, insisto, durmo, sonho feliz na terra da fantasia
vem a luz e me desprega pra que logo cedo a dor comece dentro e escorra vermelha e incandescente pele umbigo carne unhas vagina útero coração
e me rasgue ruidosamente o ventre inteiro até a boca
então o xarope derrama corredeira abaixo e se confunde com a dor que é vermelha, com a lama que é espessa, com seu sorriso que é promessa, com sua pele que é distância, com esse amor que é desalento.
- tem razão, vó, é infalível.