O grito

Hoje acordei desanimado

Refiz como sempre

Os mesmos passos

Tomei o mesmo café de ontem

Aguado, amuado

Acenei a mesma mão murcha

Para o mesmo vizinho em seu carro

Recusei um cigarro com o mesmo sarcasmo:

— Não obrigado.

— O meu cigarro,

eu mesmo trago

e enfiei as mãos nos bolsos

como se neles procurasse

resposta perdida

ou mesmo algo

mais assim palpável

caminhei apressado

pelas mesmas ruas

sem novidade

e peguei o mesmo ônibus lotado

– por necessidade –

Que sempre me mata pouco a pouco

de cansaço

As ruas, o tempo, a vida

passando...

até chegar ao mesmo trabalho

as mesmas mãos

as mesmas caras

os mesmos sorrisos falsos

o mesmo chefe e a mesma frase:

— Você está atrasado...

Tentei responder

(Hoje eu tenho de responder –

pensei comigo).

Abri a boca

O peito inchado

E nada

Dela não saiu palavra

Só o esboço fraco

De um grito rouco, falho

E um choro

Com um sabor amargo

O mundo fugindo de meus pés

E eu ali parado

Afásico

Apático

As migalhas de um eu resignado

Se desfazendo a esmo,

Ante o assassínio parcelado

de mim mesmo...

Rafael Sampaio
Enviado por Rafael Sampaio em 24/03/2010
Código do texto: T2157297
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