Alcoolismo Ontológico

Lúcifer está tão cansado de ser acusado pela humanidade

sobre as desgraças e dores pelas quais ela passa.

Entro no bar com um livro de poemas e um caderno nas mãos,

A cada copo de álcool digerido

Surgem centenas de idéias e sentimentos que querem ganhar vida no caderno.

O som do piano que minha alma toca dentro de mim

Faz-me pensar em todos aqueles que morreram;

Talvez muitos merecessem estar mais vivos do que eu,

Talvez tivessem tantas coisas ainda para concluir,

Talvez não estivessem prontos para ir naquele exato momento,

Talvez tivessem guardado em suas mentes tantas idéias geniais,

E jamais saberei quem eles foram,

A forma e a maneira que eles viam o mundo,

que ruas caminharam,

E que opiniões cada um criou para o amor, Deus, a amizade, entre tantas coisas;

E as árvores florescem novamente,

E olhos se abrem sem saber o porquê diante de uma nova manhã,

E tantas frases são ditas,

E bocas e lábios se acasalam,

E mãos tecem sonhos e planos,

Enquanto estrelas morrem em outra galáxia,

E alguém clama no leito de um hospital por uma cura a Deus,

E profecias são proclamadas tão inconseqüentemente,

Enquanto um jovem em outro país se acha o ser mais sozinho e triste do mundo.

Minha visão turva-se pelo efeito do álcool,

E quanto mais abraço o álcool mais eu sinto o cadáver da Existência entre meus braços,

É fácil usar vocábulos tais como “meu amigo”, “meu amor”;

Encho meu copo antes vazio,

E minha alma grita por dentro por explicações sobre tudo,

Mas o silêncio do Universo e de Deus faz meus olhos lacrimejarem,

E um cão procura avidamente por comida na lixeira pública,

E alguns imbecis discutem sobre tantas banalidades que assistem na televisão,

E ninguém no bar sabe realmente quem eu sou.

Chego em minha casa entorpecido existencialmente,

Segurando uma lata de cerveja levada à boca,

enquanto a água do chuveiro colide em meu corpo vilipendiado,

fazendo recordar de minha infância a qual queria mergulhar de volta,

e nunca mais sair de lá, junto com meu irmãozinho.

Não: dispenso tua compaixão teatrada,

Não quero ouvir de ti frases e palavras que meu coração quer escutar.

Se quiseres me salvar,

Mergulhe nesse abismo filosófico onde me afogo lentamente,

E salve-me de mim mesmo.

A faca que meu pai segurava ameaçando minha mãe,

Adultérios, surras, e discussões vorazes de segunda a sexta-feira,

E em todo sábado um consolo ilusório na igreja.

Copos e pratos sendo quebrados na cozinha,

E eu sempre indo e voltando de consultórios médicos desde criança,

E todas aquelas imagens que eu queria enterrar e esquecer

Ressuscitam diante de mim.

Trago em meu corpo frágil as mutilações de uma adolescência caótica.

Sei que sou o grande culpado,

Sei que minhas explicações e justificativas não podem desfazer

as mágoas que causei tanto a ti quanto a mim mesmo;

Mas eu te peço: tente sentir, tocar e ver tudo o que está reprimido no abismo de meu ser.

Sei que me pedes para superar,

Sei que queres o meu bem,

Mas não é porque eu não digo o quão és importante para mim,

E o quanto eu te amo;

Porque na realidade o que eu nunca digo a vós

É o sentimento mais puro, sincero e verdadeiro que eu queria exprimir,

Mas que infelizmente eu não consigo dizer.

Sou o caos de minha própria existência.

Deito finalmente na cama,

O som do piano em minha alma se cala,

O mundo inteiro está em silêncio,

Enquanto choro escondendo toda a minha dor,

Mas plenamente consciente de minha vida tão estupidificada

por tantos fatores externos e internos,

E minhas mãos sabem também o quão são elas culpadas.

Algo dentro de mim quer revelar-me algo,

Mas não sei se tenho mais forças para ouvir.

Gilliard Alves

Acaraú, 09 de Abril de 2009

20:18 da noite.

Gilliard Alves
Enviado por Gilliard Alves em 09/04/2010
Código do texto: T2187503
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