Taça de cicuta

Como poderíamos definir, filosoficamente, um homem tentar firmemente ancorado na sanidade, o salto ao impossível? Um louco arrostar utópico contra as amarras do previsível?

É tão mais freqüente não sonhar, nas hostes cômodas do concreto formar, viver de forma rudimentar, isento da persistente, latejante pretensão de voar.

Palavras, quase sempre, são insuficientes para que expressemos de forma coerente a excruciante angústia do existir, a ponte estreita entre o rir e o chorar.

Meu pensamento viajor, ingenuamente incontido, analisa metodicamente a miríade de cores contida numa pétala de flor, a aspirar fragrâncias de umbelas, a sondar o incognoscível.

Gestos espontâneos têm precedência, demonstram com vantagem e veemência o que as palavras tentam, em vão, desajeitadamente mascarar.

O Universo se rende, inapelavelmente, ao cúmplice calor de um abraço, a substituir, vantajosamente, longas e desnecessárias perorações.

Hieráticas faces, construtoras de abismais desatinos, derruídos templos erguidos a deuses mofinos, demiurgos de infindáveis tergiversações.

Vísceras insuportavelmente dilaceradas, hilotas em noites esquivas, a evadir-se de caçadas letais esparciatas, algo sólido em que acreditar.

Icebergs gelados, esses nossos tempos, hecatombe de ingênuos corações, holocausto irreparável de insidiosas inadequações, crematório de anacrônicas paixões.

O moto-contínuo desta monstruosa engrenagem trucida em seus dentes o desavisado viandante, a abater metodicamente, namorados, poetas e amantes - via monitores impessoais.

O fast-food da superficialidade providencia, de imediato, qualquer insólito desejo, expresso delivery propiciando bonecas infláveis, insuspeitos beijos, amores instantâneos, garotas glaciais.

Quando em futuros milênios a caixa-preta de minh’alma for decodificada, conterá um paradoxo essênio, a misturar axioma e dicotomia: há que se unir num mesmo elo amor e utopia, despidos de démarches, podados de tergiversações.

Não há terra a vista para minhas indagações; revejo, enquanto sou inundado pela água perene do chuveiro, luciferina aflição: anjos equalizados, estupidificados em eternal submissão.

Ah Elsinor! Em vossas masmorras estão protegidas abismais contestações, sombrias respostas silentes, pesados esparadrapos de doloridas questões, falas absurdas de desconexos teatros.

Clássicos sorrisos estigmatizados, fantasmas atormentados, acorrentados em penhascos sazonais; surdas, hediondas, pungentes vociferações, conveniência em prestações, eugenia em novo formato.

Não há terra a vista, marujo. Não há nenhum porto seguro se te atreves a vasculhar atrás das portas. Feches hermeticamente as tuas rebeldes comportas, encolha-te como uma ostra, proteja, agasalhada em teu coração...

...a salvo de achincalhes, a sagrada pérola de tua convicção.

Entregam-nos para provar, em vida, uma interminável taça de cicuta, a qual deverá ser sorvida gota a gota, sem desperdiçar uma molécula sequer. Ao sorvermos todo o conteúdo da nossa taça de cicuta, cumprimos a nossa missão, moldando, nesse duro degustar da cicuta, a chave para libertação de nosso espírito que, enfim, poderá executar o sonhado salto ao impossível.

Vale do Paraíba, noite da Terceira Quinta-Feira de Novembro de 2009

João Bosco

Aprendiz de Poeta
Enviado por Aprendiz de Poeta em 26/06/2010
Código do texto: T2342930
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