Os Dois Hemisférios



Ela insiste em estar sempre por perto
tal uma dor-irmã que não dói na carne
que não maltrata tanto a matéria bruta,
mais a mente, devagar e silente, ela machuca.
Nasce nas profundezas do meu ser
e me acompanha aonde quer que vá
pouco lhe importando se esse é o meu querer.

Torna-me surdo, bloqueando a voz da razão.
Mudo, para não poder gritar o meu clamor
e o meu rosto ofusca para não refletir no espelho.
Compara-me ao covarde que implora de joelhos
para não falar do seu martírio lento e atroz.

E por não querer permitir-me transcender,
converte-me numa dízima periódica
que aos poucos se gasta e se cansa
de dividir-se, sonhar, tentar, de viver...

Atormenta-me sentir o seu odor
embora haja momentos em que o deseje
quase com um alienado ardente querer.
Tal o abutre, que se nutre de entranhas apodrecidas,
assim e compulsivamente alimento-me dessa dor.

Noutro ato dela escondo-me como faz o sol no crepúsculo
ou o moribundo entre os escombros das escaramuças.
Como tudo ao meu redor está em desalinho
há pouca nitidez nas imagens dos meus sonhos
e parca luz na estrada do meu caminho.

Custa perdoar-me os erros e fracassos
cujos estilhaços atingem também
a tantos quantos estão a minha volta.

Menos possível que desvendar o mistério
dos meus devaneios utópicos
é poder sentir o calor latente na alma esmaecida;
é mensurar a minha densa solidão,
filha do desapego à própria vida e cria da distância
do “que” está no outro hemisfério...

Pior do que essa dor que me aperta com seus nós
É calar por não poder compartilhá-la.
É não transmitir os apelos do ser maltratado
que, enfermo, se definha, abafando a sua voz.