pátria amarga

tua mãe perdeu as mãos nesta manhã

o sangue fez raízes na terra batida

virou os olhos, quase perdeu a vida

e ainda não chorou, não mordeu os lábios, não deu um pio

escuta bem, meu filho

essa carta é para dizer que tua mãe perdeu as mãos

foi nesta manhã, enquanto dava de comer à tua família

como sempre fez, não pediu, não mostrou

serviu a todos como se fosse tu, como se fosse eu

a mesa transbordando de apetite, mas de fome ninguém

escuta, meu filho

tua mãe não poderá mais te escrever

tua mãe não vai mais te acariciar a barba, o cabelo

tua mãe não vai mais por o teu menino no berço

tua mãe perdeu as mãos, meu filho

e o sangue jorrou longe no Atlântico e no Pacífico

de tão forte o coração daquela mulher

ela mandou te escrever

mandou dizer que não vai chorar

porque apenas ela poderia enxugar os próprios olhos

de outra maneira não poderia ser

mandou dizer que tem dor no peito

que dói e que não há o que fazer

disse doçuras, por fim

falou bem da casa

dos bichos, de você e de mim

mas tua mãe perdeu as duas mãos nesta manhã

dando de comer, como se lavasse as roupas dum passado encardido

que teima em voltar a sujar nossas peças mais íntimas

tua mãe mandou dizer que sente muito

por essa terra em que você nasceu

pediu perdão por todos esses irmãos teus

tua mãe mandou dizer que te ama

e que você fuja para longe, dentro de si

pois ela já não mais pode ter o coração nas mãos

tua mãe mandou dizer tudo isso

que para mim não passou de um pedido

tua mãe mandou dizer adeus.

Vinicius de Andrade
Enviado por Vinicius de Andrade em 15/02/2016
Código do texto: T5544614
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