pátria amarga
tua mãe perdeu as mãos nesta manhã
o sangue fez raízes na terra batida
virou os olhos, quase perdeu a vida
e ainda não chorou, não mordeu os lábios, não deu um pio
escuta bem, meu filho
essa carta é para dizer que tua mãe perdeu as mãos
foi nesta manhã, enquanto dava de comer à tua família
como sempre fez, não pediu, não mostrou
serviu a todos como se fosse tu, como se fosse eu
a mesa transbordando de apetite, mas de fome ninguém
escuta, meu filho
tua mãe não poderá mais te escrever
tua mãe não vai mais te acariciar a barba, o cabelo
tua mãe não vai mais por o teu menino no berço
tua mãe perdeu as mãos, meu filho
e o sangue jorrou longe no Atlântico e no Pacífico
de tão forte o coração daquela mulher
ela mandou te escrever
mandou dizer que não vai chorar
porque apenas ela poderia enxugar os próprios olhos
de outra maneira não poderia ser
mandou dizer que tem dor no peito
que dói e que não há o que fazer
disse doçuras, por fim
falou bem da casa
dos bichos, de você e de mim
mas tua mãe perdeu as duas mãos nesta manhã
dando de comer, como se lavasse as roupas dum passado encardido
que teima em voltar a sujar nossas peças mais íntimas
tua mãe mandou dizer que sente muito
por essa terra em que você nasceu
pediu perdão por todos esses irmãos teus
tua mãe mandou dizer que te ama
e que você fuja para longe, dentro de si
pois ela já não mais pode ter o coração nas mãos
tua mãe mandou dizer tudo isso
que para mim não passou de um pedido
tua mãe mandou dizer adeus.