Superfície de acrílico
Nunca tocamos uma pessoa de fato:
nossos átomos
não se aproximam
nossas epidermes
são planas
e ficam paralelas
sem se observarem
enquanto nossos olhos
e abraços
carregam a ilusão de se envolver
como serpentes
no deserto
É a ciência
provando
que cada ser humano
é realmente
um universo particular
que não se colide
para provocar
algum evento
não registrado
por telescópios de metais
e circuitos
É a ciência
mostrando que
na prática o toque
é uma bela
metáfora
nas noites não dormidas
abaixo de hidrogênio
e antenas mais altas
que o tom
de nossas vozes
num canto
Nunca tocar alguém
enquanto se abraça,
nunca sentir
intimamente
enquanto se abraça
senão a vibração
de um tímido coração
mecânico
já exausto do cotidiano
que se inicia
às seis horas em ponto
expulsando sorrisos
e pintando olheiras
para servir de troféu
para uma falsa vitória
Unhas e veias e linhas na palma
não se misturam
com outras unhas
e outras veias
e outras linhas
na palma
de quem se ama:
apesar de nossas mãos
estarem emaranhadas
estamos mais distantes
do que nunca
enquanto nos desafiamos
a olhar o pôr do sol
tendo a ciência
e a lógica
viajando
em nossa anatomia
recente
A maciez de tua epiderme
é uma sensação terna
falsa
e a minha grosseria
de epiderme laboral
acinzentada
é só um retrato imóvel
uma ilusão
do que criamos
quando nos amamos
com a impossibilidade
de nos tocar
ainda que a distância
continental
nada tenha
com isso
Sempre estivemos sozinhos
ao léu
enquanto valsávamos
de rostos
e superfícies
coladas
e o suor nos iluminava
no verão inicial:
a ilusão do teu abraço
me foi tirado
e os livros acadêmicos
sangram
mais do que nunca
enquanto estamos um diante do outro
na avenida movimentada
em câmera lenta
sem saber
se nos vemos
com olhos de ingenuidade
ou com olhos de razão
ou nem nos vemos
e nos esquecemos
para esquecer
o que juntos
vivemos
enquanto a ciência existe
de forma absoluta
em nossos
corações de acrílico
em
decomposição