Mundo Profundo

Por amor

ao mundo profundo

e às coisas

consideradas

rasas,

pra não dizer

que não pintei

a aurora aguardada

nas ruas comerciais

com vitrinas

que nada

reflete

do que transita

naquela região

de miscelânea

de linguagem,

aromas

e confidências

Por amor

ao mundo profundo

e às coisas

provisórias que

cruzam

por mim

sem nunca me abraçar

sem nunca me abrandar

o peito,

a alma:

criaturas semelhantes

que me atravessam

como o grito

de um pássaro faminto

próximo

aos meus tímpanos

enquanto a estação

é desconhecida

na epiderme

das entradas urbanas

Por amor

ao mundo profundo

e ao preço baixo da sucata

em demasia

– economia

para aguardente:

não para o aluguel

que se encerra

provavelmente

no amanhã:

cada um

busca tua anestesia

para suportar o ciclo

de se viver;

cada um

se perde

sem ter

o intuito

de se encontrar

em algum

périplo

Por amor

ao mundo profundo

e à luxúria

e à angústia

e ao vazio falho em se preencher

com cada vestígio

deixado

pelas gerações de antes

e de depois

de mim:

como se eu pudesse

existir no passado

e no futuro

sem apodrecer

no presente

como um diálogo

no silêncio

Por amor

ao mundo profundo

e aos aracnídeos

que invadem a residência

para me consolarem

na ausência de algo

essencial

que agora

me escapa

o nome:

e eu não escapo,

e eu continuo

aqui:

tão magro

que vejo cada unidade

de minhas veias;

tão claro, transparente,

que presencio

a minha multiplicação

celular;

tão fraco,

vulnerável,

tão exausto

que os meus pensamentos

tornam-se os gritos

e o desespero dos civis

não ouvidos em Hiroshima

e Nagasaki

Por amor

ao mundo profundo:

se é que ainda

resta

algo

para amar:

se é que ainda

é permitido amar

sem sofrer

sem doer

sem sangrar

sem

lentamente

morrer:

os lírios caminham

pela estrada da extinção

os lírios caminham

pela estrada

da extinção