Tintas Humanas
1.
Tornar-se um pintor
e sucumbir ao
desespero sem boca
e ao medo
de se encontrar
no abismo
de uma tela branca:
branca
como um fantasma
que brota
a minha procura;
branca
como aquela
primaveril esperança
que não mais tenho;
branca
como teu corpo gelado
que implora
por invasões de brasa
e o remover
da inércia
tropical
Pintar um grito
para refletir tua angústia
diante de
tantas perdas
e decepções;
pintar tu próprio
em retrato calado
para saber se ainda és real
ou se estás
sonhando
acordado
diante d'um céu
estrelado
difícil de ser
compreendido
Pintar um abraço
feminino
para aquecer
e abrandar teus pesados
ombros de menino esquecido,
depois deixar
que a beleza te devore,
convertendo a dor
do mastigar da carne
num prazer
necessário,
numa paixão
submissa:
já que a vida lhe tira
sem repor
e te deixas
vivo num labirinto:
e no entanto
nenhum passo tu ousas
dar
– recusas a oferta
de mais outra perda,
pois o vazio é um
estrondo em teus
ouvidos e a alegria
da aurora vinda
é uma cor que não cabe
em telas tão gastas
quanto teus olhos
quanto tua mente
quanto tua coluna
quanto tua descrença
2.
Ser julgado como louco
e ser trancado
num hospício;
ter em volta do corpo
tantas correntes
que já não distingue
um tratamento
de uma prisão
para a tua
mente
Ter paredes ouvintes
e ratos
que não te devoram
a carne
por ela não carregar
nenhum desejo
nenhum valor
nenhuma
liberdade:
dividiram o mundo
em duas partes
uma vez mais:
de um lado
os nomeados sãos,
e do outro,
os nomeados
loucos
Dividiram o mundo
enquanto tu dormias
sedado
ou em profunda
agonia,
por isso não sabias
da partilha,
por isso
nada buscará
entender,
já que o mundo
não te entende:
o mundo valer
não vale:
e nós
que imaginamos
valer tanto,
nada valemos:
o mundo é confuso
e a existência é só
3.
O corpo estremece
na ausência da tinta escura
tão necessária
para criar a noite
no interior do teu quarto,
no interior
da tua cela:
no interior
do teu exílio forçado
Permanecera tanto
tempo amarrado
e enclausurado,
que desconhece tuas mãos
teus pés
teus dedos
teu tato
teus batimentos cardíacos
e o nome da estação
em que está:
sentes frio,
sentes muito
frio
No silêncio tentaste
um protesto
e não fora ouvido nem por anjos
nem por Deus,
e começaste a apodrecer
feito uma flor arrancada
e esquecida
no interior
de alguma
gaveta:
teus cabelos
cresceram tanto
e já não sabes se são
realmente teus
ou de outro alguém
ligado a
tua memória
pouca
4.
Este é o prêmio de
presentear o mundo
com a arte,
este é o prêmio de
doar o teu tempo
numa tentativa de anular
a indiferença,
este é o prêmio de
pintar
o que se sente:
a incompreensão
do teu coração
batendo,
o escárnio lamacento
da tua paixão gordurosa
e o dilacerar violento
de toda a tua vontade
e dedicação:
o mundo é um inverno
e tu estás só
e sem casaco
e sem rumo:
calculando
sem pressa
o melhor horário do dia
para morrer
*
porque rotação
e translação
existem
*
e o universo é indiferente
quanto
à morte:
nada no mesmo
se altera
diante da mesma
*
*
A morte do homem
tem peso,
significado
e importância
apenas
para o homem:
às vezes
nem isso