Era assim

 

Era assim que se lidava

Com isso, antigamente:

Escorregar devagar

Entre a morte das palavras,

Não comentar, não sentir,

Não se atrever a existir.

 

Era assim: sobrevivência

Estandarte da decência,

Um sorriso atravessado

Cobrir o que foi roubado,

E manter, a todo custo,

A aparência da aparência.

 

Era assim que se escondia

O que era abominável:

Entre as fendas das cortinas,

Por trás da eucaristia,

Dentro da boca entreaberta,

E dos olhares fechados.

 

Palavra nunca falada, 

Histórias jamais contadas,

E as almas remendadas

Cujas costuras tão fracas

Um dia, se arrebentavam.

 

Era assim que se lidava

Com isso, antigamente:

-Não se atreva, não comente,

Nem tente pedir socorro,

Não nomeie o inominável,

E não dê muita atenção

Àquele "não" calado.

 

Importava só sorrir,

Sobreviver, não sentir,

Respeitar, dizer amém

Aos pés do Santíssimo Altar,

Para ser abençoado

Pelas mãos do seu algoz

Que, por todos respeitado,

Era a eloquente voz.

 

 

 

 

 

Ana Bailune
Enviado por Ana Bailune em 12/06/2023
Código do texto: T7812271
Classificação de conteúdo: seguro