Um grito na noite (in memorian)



A enteada reclamou
A madrasta xingou
O prédio acordou
O pai não escutou.

A filha clamou
A madrasta esganou
Bateu com a cabeça
Cabeça da filha
Na parede, na mesa
O sangue jorrou
Mas o pai não escutou.

A criança pediu socorro
A madrasta protestou
Maltratou, surtou
Acordou o quarteirão
O pai se encolheu.

A filha gritou, queria viver
A madrasta enciumou, queria matá-la
O pai se acovardou, amarelou.
A cidade dormia, acordou.

Quatro mãos,
Assassinas mãos,
Rasgaram a rede,
Rede de proteção.

Quatro mãos
Assassinas mãos
Rasgaram o coração,
Jorrou a raiva,
Raiva assassina.

Quatro mãos, lavadas em sangue,
Sangue inocente, desprotegido
Sangue de criança, não de estranha
Sangue da enteada, da filha
Que diziam ser do coração.

A filha gritou
A madrasta espancou
O pai se acovardou
Jogaram a enteada
Pelo buraco da rede
Rede de proteção
No vazio do mundo
Um gritou ecoou na noite.

O povo abriu o coração
A nação escutou,
O mundo chorou
Só o pai não ouviu
O grito de sua própria filha.

Um baque, um estrondo
O jardim amorteceu
A morte não cedeu
Virou semente.
A filha do mundo
Virou manchetes nos jornais
Só ao pai não comoveu.

O povo gritou, a nação chorou
As crianças desprotegeram-se
Os jovens empalideceram
A mãe fechou o coração
E morreu de desgosto.

Os avós silenciaram
Silêncio de dor
Perderam a neta, não os filhos.
Todos estão presos
Morrendo aos poucos
Prisão de vergonha e horror.

O pai viverá
Morto em vida
A morte dos covardes
No negror da noite.
Morte de remorso, de dor.


A noite encobrirá
A morte do covarde
Ninguém o escutará
Pois ele não escutou
O clamor de sua filha.

Na surdina da noite
No âmago do coração
Para sempre na consciência
Ecoará o grito de terror
O grito de sua filha:
Papai! Papai! Papai! Pára! Pára! Pára!



In memorian a todas as Isas Bellas
que sofrem e morrem desprotegidas a cada dia
(29/03/2008)