Quasímodo e a Feiticeira

(I) - Duas crianças, o sol no céu e a docilidade do mundo

Quasímodo sempre foi o meu herói mesmo.

Não falo a esmo.

Ele nunca gostou de torresmo

nem eu.

Não que a poesia tenha que ter rima

-ou que seja poesia o que faço-

ou métrica.

Eletra nunca deixou de amar o seu deus pagão.

Mas a rima e a métrica dão

um certo conforto.

No porto da ilusão

atraco meu barco.

Casinha de madeira sob a sombra

de uma árvore grande

no seio da floresta.

Flores amarelas, sempre cuidadas por ela,

nos canteirinhos ao lado

da única porta de entrada,

estendiam-se ao longo da tímida fachada.

A pitbull gordinha,

provável produto de uma clonagem, não se detinha.

Sempre alegre, ia e vinha

por ali, como que procurando pelo portão.

Era incrível, nunca latia,

apenas sorria com satisfação.

Se sofria, não sabíamos não.

Ali viviam Quasímodo e a Feiticeira.

E a maior besteira era pensar

que os dois podiam fazer brincadeiras

de guris muito crescidos

enquanto o sol estivesse no céu.

Só vivendo pra se ver como

Quasímodo investia com a maior

docilidade do mundo

sobre sua amada, diante de quem o suspiro profundo

era o cumprimento de todas as manhãs.

E o que dizer da quantidade de carinho

- que você nunca teve, nem eu -,

com que ele tocava seu rosto com aquela mão imensa,

denunciadora do corpanzil musculoso, o guerreiro da serra.

O corpo revestido por aquela pele mulata,

o cabelo preto de fios indígenas

dispostos em franja sob a testa pequena;

o rosto quadrado, o nariz afilado,

a doce face ficando serena

sempre que os olhos dela a ele se dirigiam.

De dia, o beijo sempre no rosto,

jamais profano. O gosto de sal

da pele da sua Rainha Sarará

marcava a inocência do casal.

Delicadamente ajeitando os cabelos crespos dourados

que desciam pelas maçãs do rosto da amada,

queimadas pelo sol da serra,

Quasímodo se dava conta de que era feliz e sabia,

de que se uma santa existia,

era com ela que vivia.

Mais baixa que ele,

o rosto alcançando-lhe os ombros,

o corpo jovem e rijo de quem pode

rolar pela relva com seu amado,

como duas crianças molhando-se alegremente no orvalho

ainda retido pela vegetação,

estava ali a Feiticeira,

uma linda ninfeta. E a grande besteira

era imaginar que se amavam

de dia com sofreguidão.

Não preciso dizer que não se contava a idade.

Eram apenas dois jovens que, na verdade,

sempre de mãos dadas de dia,

muito trabalho entretia,

assim como as brincadeiras da alegria

mais pueril de duas crianças rurais.

(II) - Dois anciãos na noite profana

Mas de noite as coisas mudavam.

À meia-noite exatamente,

com o cair do manto escuro da madrugada,

a sorte estava lançada

e o jovem casal já não se via.

À meia-noite, Quasímodo envelhecia,

e na linda ninfeta uma velha existia.

Já não sendo besteira pensar que envolvia

a maior putaria o nosso casal.

O quarto, uma vez infantil, entristecia,

pois Quasímodo realmente aparecia

como na obra de arte imortal.

E a feiticeira que se via

era a do nariz encurvado. A cotia,

quem sabe, se achava mais bela que ela.

Mas os beijos eram agora na boca,

Quasímodo tornava-se mais agressivo

e, a despeito da sua aparência, a repulsa

transformava-se rapidamente em atração.

E na Feiticeira a lascívia,

que o dia da noite escondia,

agora era o que parecia

ser da vida a razão.

E também do tempo, da cama,

da foda, da roda de orgasmos aos gritos

rangendo de amor inaudito,

somente aplacado com o brilho do sol

surgindo de novo no céu.

De noite o nosso herói da manhã

era de fato viril.

No pênis, de imensa glande hostil,

a que chegavam grossas veias cinzentas

vindas a partir do escroto,

não existia sinal de cansaço

do interminável vai-e-vem

na vagina da velha do além,

de onde escorriam viscosos e incolores

líquidos que se perdiam no lençol amarelo,

o tecido adornado por pequeninas aves de arribação.

O beijo na boca era um chupão,

naquele estilo de nossos jovens esquecido.

De dia o nosso pobre Quasímodo,

no mundo infantil envolvido,

não vivia a mesma emoção.

(III) - A pitbull sozinha e os passarinhos

Toda noite a cena se repetia.

Os jovens inocentes durante o dia

eram os velhos devassos, os reis da orgia

que durava uma noite. E quando o manto se ia,

e tocavam de novo os clarins da manhã,

lá estavam as crianças no sono profundo

vigiadas pelos pardais com seus bicos na janela.

Até que um dia

Quasímodo e sua linda Feiticeira não acordaram.

Os pardais se entreolharam. O mais velho sentenciou:

morreram de tanto fuder.

Perceberam então

que as floreszinhas amarelas

ao longo da fachada da casinha sem portão,

já estavam murchas desde o início da manhã.

E viram a pitbull clonada

sair do quintal triste e encabulada,

rabinho entre as pernas,

na direção da estradinha de terra

que terminava na rodovia pedagiada

e cheia também de pardal ... eletrônico.

Seguiram-na. O mais velho à frente do bando.

Foi quando surgiu o carro do Rambo,

uma BMW possante,

brinquedo preferido do mais poderoso traficante

da cidade importante que ficava a montante

do rio que cortava a estrada.

Uma freada. Um baque surdo.

Um rastro negro de pneus no chão.

A BMW, de novo em movimentação,

arrancou solene na direção para onde ia.

Lá do alto, o que a gente via?

Os pardais sem alegria

espiavam o corpo da pitbull que jazia

na faixa de acostamento da rodovia

à espera do rabecão,

do aumento da inflação

ou do veículo da Polícia Rodoviária

que certamente não veio,

como também a extrema-unção.

Rio, 08/10/2004