Espiritualismo

I

Como um vento de morte e de ruína,

A Dúvida soprou sobre o Universo.

Fez-se noite de súbito, imerso

O mundo em densa e algida neblina.

Nem astro já reluz, nem ave trina,

Nem flor sorri no seu aéreo berço.

Um veneno subtil, vago, disperso,

Empeçonhou a criação divina.

E, no meio da noite monstruosa,

Do silêncio glacial, que paira e estende

O seu sudário, d'onde a morte pende,

Só uma flor humilde, misteriosa,

Como um vago protesto da existência,

Desabroxa no fundo da Consciência.

II

Dorme entre os gelos, flor imaculada!

Luta, pedindo um ultimo clarão

Aos sóis que ruem pela imensidão,

Arrastando uma auréola apagada...

Em vão! Do abismo a boca escancarada

Chama por ti na gélida amplidão...

Sobe do poço eterno, em turbilhão,

A treva primitiva conglobada...

Tu morrerás também. Um ai supremo,

Na noite universal que envolve o mundo,

Ha-de ecoar, e teu perfume extremo

No vácuo eterno se esvairá disperso,

Como o alento final d'um moribundo,

Como o último suspiro do Universo.

Antero de Quental, in "Sonetos"

Poeta Dom Casmurro
Enviado por Poeta Dom Casmurro em 17/04/2012
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