*Senhora das Tempestades* _de Manuel Alegre_ Portugal

Senhora das Tempestades (Manuel Alegre)

Senhora das tempestades e dos mistérios originais

quando tu chegas a terra treme do lado esquerdo

trazes o terramoto a assombração as conjunções fatais

e as vozes negras da noite Senhora do meu espanto e do meu medo.

Senhora das marés vivas e das praias batidas pelo vento

há uma lua do avesso quando chegas

crepúsculos carregados de presságios e o lamento

dos que morrem nos naufrágios Senhora das vozes negras.

Senhora do vento norte com teu manto de sal e espuma

nasce uma estrela cadente de chegares

e há um poema escrito em página nenhuma

quando caminhas sobre as águas Senhora dos sete mares.

Conjugação de fogo e luz e no entanto eclipse

trazes a linha magnética da minha vida Senhora da minha morte

teu nome escreve-se na areia e é uma palavra que só Deus disse

quando tu chegas começa a música Senhora do vento norte.

Escreverei para ti o poema mais triste

Senhora dos cabelos de alga onde se escondem as divindades

quando me tocas há um país que não existe

e um anjo poisa-me nos ombros Senhora das Tempestades.

Senhora do sol do sul com que me cegas

a terra toda treme nos meus músculos

consonância dissonância Senhoras das vozes negras

coroada de todos os crepúsculos.

Senhora da vida que passa e do sentido trágico

do rio das vogais Senhora da litúrgia

sibilação das consoantes com seu absurdo mágico

de que não fica senão a breve música.

Senhora do poema e da oculta fórmula da escrita

alquimia de sons Senhora do vento norte

que trazes a palavra nunca dita

Senhora da minha vida Senhora da minha morte.

Senhora dos pés de cabra e dos parágrafos proibidos

que te disfarças de metáfora e de soprar marítimo

Senhora que me dóis em todos os sentidos

como um ritmo só ritmo como um ritmo.

Batem as sílabas da noite na oclusão das coronárias

Senhora da circulação que mata e ressuscita

trazes o mar a chuva as procelárias

batem as sílabas da noite e és tu a voz que dita.

Batem os sons os signos os sinais

trazes a festa e a despedida Senhora dos instantes

fica o sentido trágico do rio das vogais

o mágico passar das consoantes.

Senhora nua deitada sobre o branco

com tua rosa-dos-ventos e teu cruzeiro do sul

nascem faunos com tridentes no teu flanco

Senhora de branco deitada no azul.

Senhora das águas transbordantes no cais de súbito vazio

Senhora dos navegantes com teu astrolábio e tua errância

teu rosto de sereia à proa de um navio

tudo em ti é partida tudo em ti é distância.

Senhora da hora solitária do entardecer

ninguém sabe se chegas como graça ou como estigma

onde tu moras começa o acontecer

tudo em ti é surpresa Senhora do grande enigma.

Tudo em ti é perder Senhora quantas vezes

Setembro te levou para as metrópoles excessivas

batem as sílabas do tempo no rolar dos meses

tudo em ti é retorno Senhora das marés vivas.

Senhora do vento com teu cavalo cor de acaso

tua ternura e teu chicote sobre a tristeza e a agonia

galopas no meu sangue com teu cateter chamado Pégaso

e vais de vaso em vaso Senhora da arritmia.

Tudo em ti é magia e tensão extrema

Senhora dos teoremas e dos relâmpagos marinhos

batem as sílabas da noite no coração do poema

Senhora das tempestades e dos líquidos caminhos.

Tudo em ti é milagre Senhora da energia

quando tu chegas a terra treme e dançam as divindades

batem as sílabas da noite e tudo é uma alquimia

ao som do nome que só Deus sabe Senhoras das tempestades.

(SENHORA DAS TEMPESTADES, PUBLICAÇÕES DOM QUIXOTE, Lisboa, 1998 P. 25(

Manuel Alegre

1936

Portugal

Manuel de Melo Duarte Alegre nasceu em 1936 em Águeda. Estudou na Faculdade de Direito de Coimbra onde fundou o CITAC (Centro de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra) e participou no TEUC (Teatro de Estudantes da Universidade de Coimbra). Voz inconformada e inconformista destacou-se em vários géneros literários mas é na poesia que o seu nome é bem conhecido.

Da sua obra poética destacamos: Praça da Canção (1965), O Canto e as Armas (1967), Rua de Baixo (1990), Com que Pena - Vinte Poemas para Camões (1922), Sonetos do Obscuro Quê (1993), Coimbra Nunca Vista (1995), Trinta Anos de Poesia (1995), Senhora das Tempestades (1998) este último livro valeu-lhe os prémios Crítica e Associação dos Escritores Portugueses.

Myriam Peres
Enviado por Myriam Peres em 15/10/2005
Reeditado em 15/10/2005
Código do texto: T59936