Viver

Viver é risco imposto. Não se escolhe, se é convocado. São dadas armas e se é despejado na praia, por transporte militar, no meio de uma guerra que agora também é sua. Avança-se, procurando trincheiras e paramentos contra os tiros incandescentes das metralhadoras inimigas. Vez ou outra uma bomba explode perto e leva amigos e familiares. Não se tem o conhecimento exato da estratégia dos velhos, mas seguem-se as suas ordens.

Mas não é necessário atirar ou lançar granadas para viver. Existem muitos tipos de soldados. Pode-se ser enfermeiro. Há como ser objetor por consciência, aquele que escolhe não pegar em armas. Na vida, não se é levado a uma corte marcial por isso.

Viver é nascer tartaruga marinha.

A mãe, zelosa, escolhe o local nas areias quentes da praia e faz uma cova. Despeja então seus vários ovos, com o prazer de dar à luz conferido somente às mulheres. Tempo depois, as tartaruguinhas eclodem de seu berço e tomam consciência do que precisam fazer: o mar as chama. E elas vão, aos montes, em busca do balanço das marolas e da proteção das profundezas.

Mal nasceram e já sabem andar. Mal caminham e já sabem correr. As areias entre o nascimento e o mar são quentes, o tempo do dia é bonito. Mas há aves. Pássaros costeiros ávidos por uma tenra e indefesa presa. Muitas aves. Mal cessa a corrida dos espermatozoides e toma lugar outra corrida pela vida. Já no mar, descanso não há. Nunca se pode dormir na vida, seja na água, seja na terra, seja no ar. Peixes e tubarões as esperam para seu banquete. Mesmo assim, tartaruga marinha existe.

Viver é florescer à beira da estrada do espaço-tempo. Não no meio, para não ser pisoteado. Não no início, o qual é desconhecido. Nem no fim, o qual é inalcançável. Flores, arbustos, ramas e árvores crescem ao longo dos flancos da passagem. Algumas dão frutos, outras sombra, outras ainda perfumam a atmosfera. Umas tem beleza e guardam espinhos. Outras causam urticação e provocam tropeços, invadindo o caminho.

Viver é acordar na selva escura e ouvir-lhe suas canções. É ter medo de gritar e atrair predadores. É temer calar-se e não ser encontrado. É recear andar e perder o caminho de volta. É a ficar parado resistir, mantendo-se, enquanto a floresta e suas músicas continuam a subsistir.

É como nascer pássaro pelado no ninho e um dia ter de voar e cair.

É como ser sino, que precisa ser batido para vibrar suas badaladas pelos ares.

Ou é como ser corda instrumental, que tem de ser tocada de diferentes formatos e intensidades para produzir uma miríade de sons e desenhar, no vazio, seus recurvados ziguezagues.

Viver é se surpreender gladiador, vestindo armadura e empunhando espada e escudo. Tenta-se a defesa para abrir lugar ao ataque, posicionando os pés e controlando os pesos do corpo. Procura-se uma fresta no adversário para dela fazer jorrar sangue. Então, de sobressalto, percebe-se que não é para isso que se vive. Pois viver não acontece em arena, que é lugar fechado sobre si. Viver acontece em caminho, que é local de passagem, que leva a outros lugares passando por belezas ainda à espera de seus viajantes fugazes.