RENARD E O LOBO PRIMAUT

RENARD E O LOBO PRIMAUT I – 23 NOV16

Decerto ainda recordam da proeza

pelo ardiloso Renard executada,

cuja fome conseguiu ter aliviada

por malandrice cheia de esperteza.

Perante os dois peixeiros mostrou tesa

postura, sua morte assim bem encenada;

junto dos peixes foi a raposa colocada

para esfolarem a sua pele com destreza.

Mas era apenas da morte o fingimento:

mal o deixaram os peixeiros imprudentes,

engoliu o mais que pôde, bem depressa!

E três enguias no pescoço, a seu contento,

enrolou, mais gordo peixe nos seus dentes,

para sua toca a correr na maior pressa!

Bem que os peixeiros tentaram alcançá-lo

e em verdadeiro perigo se encontrou,

porque a comida na barriga lhe pesava

e quase um deles conseguiu pegá-lo!...

Mas se enfiou dentro de fundo valo,

por entre árvores embarafustou,

até que o pobre homem despistou,

que tão somente conseguiu amaldiçoá-lo!

Porém lianas se prendiam nas enguias

e precisou para a estrada retornar

o gordo peixe a atrapalhar-lhe o passo,

já seu fôlego opresso nessas vias,

mas em seguida à sua toca iria chegar

e continuava, por maior fosse o cansaço!

Mas de repente, numa dobra do caminho

deu de cara com um lobo, justamente...

Ao outro reconheceu rapidamente:

era Primaut, um animal forte e mesquinho, (*)

(*) Leia-se PRIMÔ.

de Ysengrin era irmão, sem ter carinho

por Renard; que, fanfarrão e prepotente,

aproximou-se, sua expressão contente,

das enguias farejando lá o cheirinho!...

“Para onde vais correndo, Raposão?

É uma manta que enrolas no pescoço?

É um colar que te pende do focinho?”

“É um Namorado e três enguias, meu irmão?

Agora mesmo terminou o teu retoço,

sou eu que vou comer cada peixinho!...”

Ora, Primaut era maior e, realmente,

numa corrida dele fácil lhe ganhava,

ainda mais assim pesado como estava...

Iria perder seus petiscos totalmente?

Soltou o peixe, seu focinho bem pendente:

“Caro senhor, com prazer tudo lhe dava,

mas por correr, nas enguias eu suava

e o Namorado já babei completamente!”

“Nem me atrevo a lhe dar tal porcaria,

meu caro amigo, seria um desrespeito!

Mas lhe direi de que modo conseguir

“quantidade a seu gosto da iguaria,

desde que sabia demonstrar, com certo jeito,

igual que eu fiz, sem em nada se ferir!...”

RENARD E O LOBO PRIMAUT II

“Está ouvindo o carroção subindo a estrada?

Pois está cheio de peixes, meu amigo!

Estes pequenos lá obtive sem perigo

e de trabalho custou-me um quase nada!...”

“Você se finge de morto, camarada!...

Vão querer tirar-lhe a pele para abrigo

e o jogam na carroça, é o que lhe digo!

Foi assim que consegui a minha peixada!”

“Mas é preciso que saiba fingir bem,

pois vão, decerto, empurrá-lo com o pé,

mas prenda firme sua respiração!”

“E comerá o quanto quiser também;

talvez mesmo possa levar um pontapé,

mas vale a pena, pois terá lauta refeição!...”

Primaut foi logo em busca da carroça

e bem ao meio do caminho se estirou;

veio a carroça estalando e então parou

“Ora essa, agora é um Lobo nessa joça!”

“Será que quer também nos fazer troça,

Igual que aquele Raposão nos enganou?”

E um forte pontapé logo atracou,

mas Primaut não se move e nem retoça!

“Deve estar morto... Mas, por garantia,

primeiro vou assentar-lhe boas pancadas...”

“Só não lhe estrague a pele!” – o outro falou.

Primaut escondeu toda a dor que ali sentia,

mas duas costelas enfim foram quebradas!

Não conseguiu mais aguentar e se esticou!

“Ah, está vivo!... Mais um outro espertalhão!

Mas já não vai por muito tempo continuar!...”

Da boleia veio o outro a lhe ajudar,

cada qual a bater com mais paixão!...

Vendo Primaut como estava a situação,

começou inicialmente a se arrastar,

depois, aos poucos, pôs-se a tropicar,

levando ainda vinte golpes de bordão!

Mas enfiou-se num riacho que passava

e então saiu nadando, com vigor...

Os negociantes não quiseram se molhar!

Enfim Primaut na sua toca se encontrava,

vazio o estômago, sentindo muita dor

e ainda molhado de se enregelar!...

Não morreu, mas ficou muito doente,

o tempo todo a mastigar vingança

contra Renard, vivendo da esperança:

Ainda mato esse patife, certamente!

Porém Renard chegou logo, bem contente,

em Malpertuis, as enguias como trança,

que alegremente recebeu cada criança,

enquanto a esposa comia o peixe, inteiramente!

“Você não quer um pedaço, meu querido?”

“Que nada, meu estômago está cheio!

O mais difícil foi chegar até aqui!...”

E muito alegre lhe narrou o sucedido:

“Passei a perna naquele Lobo feio,

senão roubava o quanto eu consegui!...”