A barra é tudo tudo é barra - são joaquim da barra

para dona Silota, minha mãe,

seu Valdovino, meu pai

e a minha gente de São Joaquim da Barra

A barra é tudo tudo é barra.

A praça da matriz, a festa da lapa, a quermesse,

seu Chiquinho barbeiro e o grupo dos onze,

o sete no açougue do seu Júlio de Lollo,

tio Décio com as baterias Heliar e as memoráveis pescarias,

as serestas do seu Anis, o dentista da dona Ernestina,

que ensinou a gente a gostar de Silvio Caldas,

o Lando, o João e o Beto, que assustavam as meninas

com dentes de vampiro e pálpebras reviradas.

a barra é tudo tudo é barra.

A dona Terezinha, dona Célia, dona Elza e o presente

mais bonito, Os Três Mosqueteiros, dona Yone

que nos ensinaram as primeiras palavras,

a Mariúcha, a Rochana e o Paulinho Filet,

que mergulhava no ar e voava nas águas,

filhos do professor Crezo, nosso primeiro comunista,

como choramos dentro do cinema

com a notícia do acidente que o levou,

mas a história continuou, como sempre,

no encanto da professora Solange Ferrero;

tudo que sei aprendi com eles, os primeiros mestres.

a barra é tudo tudo é barra.

seu Valdovino, meu pai, que pisava em brasas,

cada dia me pareço mais com ele,

e sua sapataria cheia de política, espiritismo, pássaros

e sonhos ancestrais de sindicalismo,

o armazém do Cecílio que cresceu com a gente

e com o Roberto, o nosso turquinho, amigo de todas as horas,

a dona Lídia, o Iu, quer dizer, Alfredo, o Eduardo, a Regina, a Tereza, a padaria dos Gomes e meu amigo Joãozinho,

o seu Álvaro Bosqueto e a filha guerreira, a Leila, sempre irmã,

seu Nelson e o grupo escolar Sylvio Torquato Junqueira,

os Junqueiras com suas terras, pólo e cafezais

e, claro, a Bia, o chopp, a boemia que ficou no lugar da estrada de ferro que mudaram pra outro lugar

e não mais aquele cuidado-pare-olhe-escute a caminho de casa, o Oscarzinho, filho da dona Eyre, secretária do Ginásio, que quase matei enforcado e depois virou amigo de verdade, os Boldrin e as histórias do Rolando, nosso talento e orgulho,

o teatro vermelho e verdadeiro da Dulce Muniz

que me ensinou o amor às artes e à verdade,

meu irmão guerrilheiro, o Dja, motivo do meu primeiro gesto

de rebeldia, soltar um cheiro alemão, dentro da sala de aula,

para ofender a professora que chamava os meninos de terroristas, depois de vê-los, com olhos de criança, torturados nos porões,

o mestre Ivo Vanuchi, a Maria Lucia, e o Zé Ivo que virou prefeito, o pastel do Bitonti, o quibe do seu Dib e o sorvete do Guiniti, sabores eternos em minha boca, em minha alma.

A barra é tudo tudo é barra.

A tia Amália, a tia Leo, a Marta, a Heloisa, a Maria Amália

e a Lúcia, nossa Julieta, o Wanderley e suas pernas voadoras,

o capilé do seu Alcebíades, o Tomate, o Felício e a Isabel,

o Donizete que tinha mais dedos nos pés, o Cutuba,

a Maria pé-pu-mato, o Dominguinho sem calça

e sua mãe benzedeira, que tirava nossos cobreiros

com facões e rezas e eu morrendo de medo,

a dona Abadia mascando fumo de rolo,

os Toscano criando abelhas, os Lupoli e as meninas pianistas, o Baby, o Lulezo e Iracema, a grande, filhos do Dito pintor, o gigante Tobião, o Picoto nosso primeiro ator e poeta

escrevendo causos e cortando cabelos de casa em casa,

o basquete japonês dos Ides, o Luizinho recruta ainda,

que me passou o maior susto na auditoria militar,

fingindo que ia me prender naqueles tempos tenebrosos,

os Mantovanni, os Basaglia, a Donana e a menina Cecília

que perdemos por causa de um maldito raio, o Pansani,

o Chiquinho da Casa Santo Antônio, o Kiko e a Teresa,

o Manoel Lourenço de leites e gados, a vó Coló,

o Arizinho e a Ofélia eternos amigos do pai e da mãe,

a dona Catarina que nunca acreditou que o homem foi à lua,

a Dalva, segunda mãe, que correu mundo e voltou pra ficar

e discordar sempre, que também é preciso.

A barra é tudo tudo é barra.

A dona Silota que me ensinou a ter saudade de tudo isso,

com seus eternos cabelos brancos, sempre cuidando do jardim e o quintal de goiabas, romãs, limões, pinhas, uvas e proteção,

o Darcy que perdemos numa festa de São Pedro, com tétano, negligência médica, peraltice e fogos de artifícios

explodindo em suas mãos e peito e braços,

talvez tivesse sido o mais rebelde dos irmãos,

o seu Emiliano, quase pai, sempre cheio de cuidados

e o padrinho Adyr e a madrinha Santa,

o rio Sapucaí, o Espigão, onde nunca aprendi a jogar futebol,

mas fui mascote na fotografia que guardo até hoje, a Baixada,

o córrego da barra, os Deienno, o Ivan, a Jurema,

os Mattaraia, dona Yvone, o Tim, a Regina,

a pedreira na memória e o medo das explosões,

a casa bancária dos Lessa e os Teixeira,

com Sérgio e seus poemas e o Guto, amizade criança,

a pintura do Norberto Stori, colorindo o mundo,

que pedi pra nunca mais emprestar livro pra minha irmã

pra que eu não tivesse que ir devolver,

a poesia do Tom Pires, que virou doutor em literatura,

numa terra de médicos, advogados e fazendeiros

a dona Maria Helena, cheia de música, mulher do seu Ribamar, que tentou, em vão, me ensinar a cantar.

A barra é tudo tudo é barra

O footing na praça da matriz, a fonte luminosa,

o padre Mário, voltando de manhãzinha do convento,

o Jabur e o seu populismo nos pedais da bicicleta,

os Maffei e a Ana Maria, os Puga, Carniato, Barbanti, Trombini, seu Poli da farmácia e a Dorinha, os Leonetti e a primeira livraria, veio dali o meu vício, os Ceribelli, as meninas dos Carrara, os Ravagnani e a Norma, mama mia, a Itália toda, os Sostena e os sapatos, os Mauad, Badran, Nader, a casa Camelo com tecidos vindos das arábias, agora eu entendo essas minhas predileções italianas e árabes com seus espaquetes, quibes crus, raleu e coalhadas, mas Portugal não nos abandona, os Carvalho e Trindade e o gosto de bacalhau em minha boca com poemas de Pessoa, os Delmônico, o Nego Tomazini, meu adolescente amigo socialista e a gente cantando Sidney Miller escondido dos inimigos,os Parada, instrumentistas persistentes, e a banda no coreto, talvez tenha nascido aí meu amor pela música,

os Pazzeto com suas novilhas e éguas,

a família inteira com i, Iran, Ivan, Ian, Irana, Iana e tantos,

todos filhos do seu Crisóstomo e das águas,

o pinga-pinga do ônibus da Viação São Bento,

o prefixo da rádio ZYK4 em meus ouvidos,

a Antonia, o Augustinho com sofás e mais sofás para o mundo, a madrinha Edna, a China e o Pitina que foram pra capital morar na rua topázio e nunca mais voltaram.

A barra é tudo tudo é barra.

O seu Agesípolis, nunca acertei o nome desse homem tão certo, pai da Simone, minha colega, que um dia chorou

porque tirou uma nota nove, e hoje ensina todo mundo a ler,

o Cido, mão santa da injeção, os Falleiros, a pharmacia, com ph, o seu Augusto farmacêutico, outro socialista, amante da literatura, tinha mais socialista do que podíamos imaginar, todos discretos,

o seu Toninho Coronato cheio de fios, eletricidades e ternura

e sua filha Lucíola que me ensinou datilografia,

os domingos no cine Mongol, os filmes proibidos

que nunca pude assistir no Santa Cecília,

o doutor Mário Rossi, que se enfiava na geladeira sofrendo de calor, os primeiros olhares, a Virginia, filha do juiz, a Lucélia, a Bell, e a filha do Saia, Maria Alice,a Mércia e a Stela Rossi,

ah! Stela em que estrela você se escondeu?

A barra é tudo tudo é barra.

A barra é esse nome de santo, São Joaquim,

sempre sonhei mudar o nome da cidade,

bem que podia se chamar Barra Vermelha

por causa da cor da terra onde brota tanto alimento.

E tudo é a mesma barra, de São Joaquim da Barra

à Barra do São José do Rio Negro, sempre a vida.

a barra é suave, a barra é pesada,

a barra é a saudade que dói em mim,

a barra é tudo que podia ter sido e não foi,

a barra é esse menino que partiu e se perdeu no mundo,

a barra é essa bruta distância em meu peito.

a barra é tudo tudo é barra.

dori carvalho
Enviado por dori carvalho em 04/05/2010
Reeditado em 14/05/2010
Código do texto: T2236509
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